19/03/2020

Pandemia e Cárcere: Um Viés Constitucional

Lucas Laire, Advogado Criminalista e Professor da Puc Minas

No dia 16 de março de 2020, os Chefes do Poder Judiciário e do Poder Executivo Mineiro, editaram em conjunto a Portaria n. 19/2020, que reconhecia a gravidade da Pandemia causada pelo CONVID-19 (novo cornona vírus), que, dentre outras diretrizes, trouxe uma série de recomendações atinentes às pessoas privadas de liberdade no Estado de Minas Gerais.

O objetivo do presente artigo não é discutir os impactos econômicos ou sanitários da referida Pandemia ou a sua eventual expansão em território brasileiro, mas analisar as medidas adotadas para a população carcerária sob a ótica do garantismo penal e consequentemente sua matriz constitucional.

Vale ressaltar que as autoridades mineiras editaram a referida Portaria, respaldadas pelo Decreto de Emergência com numeração especial 113 de 12 de março de 2020, que declarou situação de emergência em saúde pública no Estado de Minas Gerais em razão do surto de doença respiratória – Coronavírus.

​Dentre as principais medidas recomendadas podemos destacar as seguintes:

Art. 3º Recomenda-se que todos os presos condenados em regime aberto e semiaberto devem seguir para prisão domiciliar, mediante condições a serem definidas pelo Juiz da execução.

Art. 4º Recomenda-se, igualmente, a prisão domiciliar aos presos em virtude de não pagamento de pensão alimentícia.

Art. 5º Recomenda-se a revisão de todas as prisões cautelares no âmbito do Estado de Minas Gerais, a fim de verificar a possibilidade excepcional de aplicação de medida alternativa à prisão.

Art. 6º Aos indivíduos privados de liberdade que se enquadram no perfil do grupo de risco, assim definidos pelo Ministério da Saúde, a exemplo os diabéticos, cardiopatas, maiores de 60 (sessenta) anos, pós operado, portadores de HIV, tuberculose, insuficiência renal, recomenda-se a reavaliação da prisão para eventual medida alternativa à prisão.

Incialmente podemos observar que parte do espectro das pessoas privadas de liberdade foi englobado na referida portaria.

Assim, tem-se que para aqueles presos em razão da inadimplência de prestação alimentícia e aos sentenciados que se encontram em execução penal nos regimes semiaberto e aberto foi recomendada a prisão domiciliar.

Recomendou-se também a revisão de todas as prisões cautelares ora decretadas (temporárias ou preventivas), de forma que cada magistrado possa reavaliar os critérios de necessidade da segregação ante à brusca mudança do atual cenário social, adotando-se assim quaisquer uma das medidas previstas no Art. 319 do Código de Processo Penal.

Aos presos enquadrados no grupo de risco do Ministério da Saúde, critérios etário e de vulnerabilidade (doença grave ou pós operados), igualmente foi recomendada a revisão das decisões que fundamentaram as prisões e se estas podem ser substituídas por medidas alternativas diversas.

Assim, ainda que de forma parcial, a população carcerária mineira ganhou um precedente normativo importante para a garantia de direitos fundamentais não atingidos e ou limitados pela decisão judicial que outrora lhe restringiu a liberdade.

Todavia, parte da população e alguns representantes do poder público não pouparam criticas à referida Portaria, aduzindo que a liberdade dessas pessoas colocaria a sociedade em risco e aumentaria a sensação de insegurança.

Ora, ao Direito Penal somente é licito tolher a liberdade (dentro dos limites legais), sendo vedado a violação da integridade física, psíquica e o direito à vida de quaisquer das pessoas privadas de liberdade.

Posto isso, temos ainda a situação fática dos estabelecimentos prisionais mineiros: com a pública e notória superlotação, condições precárias de higiene, ambiente fechados com restrita circulação de ar, fatores concretos que potencializam a capacidade de disseminação do CONVID-19 e a capacidade limitada de atendimento médico hospitalar nas redes publicas e privadas de saúde.

Em situações como a que se apresenta, há necessidade de efetivação de princípios constitucionais, sendo que a busca da melhor solução possível passa necessariamente pela ponderação de bens ou interesses tutelados ou contidos nos referidos princípios.

​ A boa doutrina pátria comunga com o magistério de Robert Alexy, no qual os princípios são mandados de otimização, entendidos como ordens que vinculam condutas e determinados fins ou valores (inclusive os políticos), de acordo com as condições fáticas e jurídicas, aplicando-se, por isso mesmo, na medida das possibilidades.

​ No caso de eventual colisão e/ou violação como ocorre na situação trazida a exame, a referida ponderação deve ser feita mediante aplicação do princípio da proporcionalidade e suas respectivas máximas, a saber: a proporcionalidade em sentido estrito, a necessidade e a adequação.

​ Tal exigência se faz ainda mais necessária quando se trata de uma Pandemia, com sua capacidade de contagio objetivamente confirmada e um parcela de pessoas (presos) em clara situação objetiva de risco.

​ Assim teríamos de um lado um risco social subjetivo e hipotético com a liberdade dos presos e um risco social objetivo e concreto com a manutenção das referidas prisões.

​ Toda e qualquer interpretação de texto normativo, sejam os códigos ou legislação especial, deve ser realizada conforme a Constituição, nunca o contrário. O intérprete deve pontuar todo o processo hermenêutico pela observância ao mandamus constitucional, seus fundamentos, justificativas e finalidades.

​ O melhor caminho a ser seguido, tendo como referencial teórico o garantismo penal e a interpretação teleológica do texto constitucional é sem dúvida a prevalência dos demais direitos fundamentais, saúde e vida.


Em síntese, a otimização das possibilidades reais e jurídicas objeto do Verhältnismässigkeitsgrundsaltz – para continuar empregando a terminologia de ALEXY – tem por objetivo integrar princípios, meios e fins em unidades jurídicas e reais coerentes – ou seja, harmonizar os meios e fins da realidade com os princípios jurídicos fundamentais do povo. (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral Curitiba: ICPC, Lúmen Juiris, 2006, p. 27).


​As garantias e princípios constitucionais penais devem ser interpretados e aplicados respeitando-se o binômio “máxima realização/mínima violação” conforme o lúcido pensamento de Eugenio Raúl Zaffaroni, que ainda ensina:


É absurdo pretender que os sistemas penais respeitem o princípio de legalidade, de reserva, de culpabilidade, de humanidade e, sobretudo de igualdade, quando sabemos que, estruturalmente, estão preparados para os violar a todos. O que se pode pretender – e fazer – é que a agência judicial empregue todos os seus esforços de forma a reduzir cada vez mais, até onde o seu poder permitir, o número e intensidade dessas violações, operando internamente a nível de contradição com o próprio sistema, a fim de obter, desse modo, uma constante elevação dos níveis reais de realização operativa desses princípios. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Ronamo Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001, p. 235)

​Tal exigência se faz ainda mais necessária quando se trata de pessoa posta sob a custódia estatal, na qual os demais direitos permanecem inalterados e cumpre ao Estados e seus agentes zelarem pela sua não violação.

​Caso contrário, a omissão do poder público, diante de uma pandemia como a que se apresenta, não só deixa o preso em posição de vulnerabilidade, como o despersonaliza, o reduz a uma subcategoria de ser humano, destituído de direitos, destituído de comiseração, transforma o infrator em inimigo.

​Manter a pessoa privada de sua liberdade à mercê de uma iminente contaminação é criar uma pena sem a devida cominação legal, é instituir uma exposição injusta e ilegítima a um suplicio corporal sem direito de defesa, sem recursos mínimos de enfrentamento e sem o mínimo de solidariedade.

​É punir o ser e não o agir, é negar toda a construção do instituto da culpabilidade é por fim ao princípio da individualização da pena. Se apegar ao risco social que a eventual liberação dessas pessoas possa causar é construir um discurso fundante no conceito impreciso de periculosidade.

É decidir diante de uma ameaça concreta quem é merecedor de direitos fundamentais ou quem não é. É negar todo avanço civilizatório e retroceder à criminologia positivista. Sobre as consequências de tal comportamento salientamos novamente a lição de Eugênio Raul Zaffaroni:

A periculosidade e seu ente portador (o perigoso) ou inimigo onticamente reconhecível, provenientes da melhor tradição positivista e mais precisamente garofaliana, cedo ou tarde, devido à sua segurança individualizadora, termina na supressão física dos inimigos. O desenvolvimento coerente do perigosismo, mais dedo ou mais tarde acaba no campo de concentração. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 104)

​Fechar os olhos para o contagio avassalador da atual pandemia e não minimizar os seus efeitos perante os seus cidadãos (e aí se incluem as pessoas privadas de liberdade) não nos parece a medida constitucionalmente valida.

Outro ponto que ainda deve ser ressaltado e não menos importante é a exposição de agentes públicos ao risco máximo, caso este não seja minimizado pela redução momentânea da população carcerária, são inúmeros servidores públicos, desde os policiais penais até os técnicos da execução, médicos, assistentes sociais, psicólogos, e integrantes do quadro administrativo, todos em condições semelhantes de contagio.

​A presente portaria, acertadamente minimiza o impacto e eventual dano, ao adotar medidas concretas de esvaziamento dos superlotados estabelecimentos penais, evitando que os mesmos sejam transformados em locais de contaminação massiva.

O grande marco do atual paradigma democrático é reafirmar e garantir a força normativa da Constituição, ou nas palavras de Konrad Hesse:


Se o Direito e, sobretudo, a Constituição, tem sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tabula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionado-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa data situação. (HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFE, 1991, p.22/23)


Toda validade e estruturabilidade do ordenamento jurídico emanam da Carta Fundamental, que no atual paradigma de Direito Democrático representa um conjunto simbólico, que vai muito além de normas e princípios informadores, consoante ensinamento do constitucionalista José Adércio Leite Sampaio:



A Constituição apresenta uma força simbólica até superior às suas outras dimensões: do ponto de vista da filosofia política e do direito ela desola quase todo debate para dentro de seu mundo, reduzindo questões de validade a questões de constitucionalidade. No plano do direito internacional, ela se vai apresentar como atributo simbólico de soberania, semelhante ao hino nacional, uma espécie de ‘cartão de visita internacional’ para os novos Estados e governos. E, internamente, ela reunirá o sentido de um ‘contrato’ ou ‘pacto fundador’ que tem um papel decisivo como forma de integração total ou de autoconstrução da identidade comunitária. (SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pg. 18).


Na medida que a Constituição estabelece o principio da humanidade como norteador do Direito Penal, ao enaltecer a dignidade da pessoa humana e vetar expressamente penas cruéis, penas de banimento, castigos corporais, penas perpetuas e a pena de morte em tempos de paz, temos que a Portaria Conjunta n.19/2020 se situa de forma harmônica ao ordenamento vigente.

Os magistrados, enquanto moderadores do poder punitivo, ao assegurarem tais direitos (saúde e vida), tutelarão de forma consciente o regular cumprimento da pena, bem como a instrução criminal daqueles casos ainda por julgar. Assim a presente Portaria contempla de forma ampla interesses públicos e individuais, sendo um importante avanço no atual cenário de obscurantismo pela qual passam as Ciências Penais.

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