Todo ano eleitoral, a pretexto de resolver o problema da violência urbana no Brasil, projetos de lei dissociados de estudos científicos e/ou dos anseios da sociedade civil são pautados e aprovados repentinamente. Entre as temáticas destes projetos é comum a revogação de dispositivos da lei de execução penal sob o argumento de que ela concede "benefícios" às pessoas privadas de liberdade.
E é exatamente no cenário acima que se cogita a votação, em regime de urgência, do Projeto de Lei 360/2021, que pretende acabar com a saída temporária para pessoas que cumprem pena em regime semiaberto.
Logo de início é importante desmistificar a ideia de "benefícios" da execução penal, posto que, de fato, os direitos das pessoas que cumprem pena, para serem exercidos, exigem uma série de requisitos. Para ter direito à saída temporária, a pessoa privada de liberdade deve estar no regime semiaberto, ter bom comportamento, ter cumprido no mínimo 1/6 da pena se for primário e, 1/4 da pena se reincidente, além do crime cometido não ser hediondo com resultado morte.
Ademais, a saída temporária é fruto de uma concepção de que a pena deve ter uma finalidade, qual seja, a ressocialização do preso. Isto é, os chamados "benefícios" da execução penal são instrumentos de que o Estado elegeu para promover a "ressocialização" do preso e resgatar-lhe o humano.
É sabido que o desencontro entre a liberdade e a segurança, especialmente após a globalização, se acirrou no mundo. No entanto, como lembra o criminólogo Bergalli, a liberdade é fruto das revoluções políticas liberais, enquanto a segurança é oriunda das revoluções sociais; ambas se tornaram direitos fundamentais e devem ser tuteladas.
Por isso, mudanças legislativas na esfera penal, processual penal e, especialmente, da execução penal não devem ser realizadas quando dissociadas da base científica sobre a qual se fundaram.
Cientificamente, o efeito criminógeno da prisão não é novidade. A prisão reproduz a criminalidade, gera a reincidência, condiciona patologias psíquicas (neuroses de caráter e neuroses reativas regressivas) e reforça os papéis desviados como decorrência da exigência de assumi-los na vida carcerária para que o indivíduo sobreviva sem provocar distúrbios agressivos, além de incitar a violência com as rebeliões ocorridas no interior dos presídios.
O Brasil, vale lembrar, é signatário de Tratados e Convenções Internacionais em que se comprometeu a assegurar a Dignidade Humana. Nos termos do que dispõe o art. 5º, inciso XLVII, alínea b, da Constituição da República em 1988, no Brasil a prisão perpétua e as penas de longa duração são proibidas porque ferem a Dignidade Humana, pois que implicam em efeitos psicológicos e sociais negativos.
O caráter totalizante da prisão, como estudado e apresentado por Erwing Goffman, faz com que a pessoa presa perca a sua individualidade e se distancie de seu papel social, frustrando qualquer expectativa de reintegração à comunidade, especialmente pela interiorização de atitudes comportamentais típicas da subcultura carcerária. Não é demais dizer que a prisão exclui não somente a pessoa presa do convívio social, como retira dela a capacidade de se auto-organizar no tempo e no espaço.
De outro lado, a saída temporária assegura a manutenção de vínculos familiares e sociais. Estimulando a autodisciplina, a medida busca gradualmente reinserir a pessoa privada de liberdade em seu meio, sendo essa uma das razões de somente ser possível a quem se encontra em regime semiaberto.
Enquanto a mídia foca no 4,66% que não retornam ao cárcere após alcançarem a saída temporária, as pesquisas indicar que 95,34% retornam. O fato de uma parcela das pessoas privadas de liberdade não retornar ao cárcere quando alcança a saída temporária - destaque, representam uma minoria - não pode se usado em detrimento daquela que não cumpriu efetivamente o que lhe foi imposto.
Por fim, a deficiência organizacional do Estado em aplicar a lei e assegurar que ela seja efetivamente cumprida não pode ser utilizada para restringir direitos. Até porque, se o juízo da execução penal entender necessário, nos termos do art. 122 § 1º e art. 146-b, inc. II da Lei de Execuções Penais, poderá aplicar a monitoração eletrônica. Ainda assim, se os agentes da segurança pública não são capazes de cumprir o dever de recapturar as pessoas que não retornaram da saída temporária, a mazela é da segurança pública e não das pessoas privadas de liberdade que estão cumprindo a lei.
Do exposto conclui-se que, a revogação da saída temporária impede qualquer possibilidade que a pessoa presa tenha de se reintegrar á sociedade, afinal, a extenção do tempo de privação de liberdade somada à deterioração do ambiente prisional não só aumenta o efeito repordutor criminógeno da prisão, como também os frequentes massacres e os nassacres em conta-gotas fazem com que a pena de prisão passe a ser uma pena de morte aleatória, por qualquer delito e mesmo por nenhum delito.
Com tais considerações, o ICP - Instituto Ciências Penais - recomenda a rejeição do PL 360/2021, bem como a ampliação do debate do tema com a comunidade científica e a sociedade civil.