27/02/2024

Modificação da Lei de Execução Penal sobre saída temporária

Sempre que um crime causa comoção pública, surgem iniciativas para tentar contemplar a sanha punitivista e aplacar o sentimento de insegurança. Foi assim com a regulamentação do art. 5º, XLIII da Constituição pela Lei 8.072/90, que cuidou de listar os crimes hediondos e equiparados e conferir-lhes tratamento mais rigoroso. Na ocasião, os sequestros do empresário Abílio Diniz e do publicitário Roberto Medina deram o tom da discussão. O mesmo ocorreu com a inclusão do homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos, alteração seguida da morte da atriz Daniela Perez.

Estes são apenas exemplos de como o legislador tem se apresentado como porta voz do clamor público, ofertando soluções rápidas e pretensamente eficazes ao combate à criminalidade, causando a sensação de que providências estão sendo tomadas diante da repercussão de crimes graves.

Em 20 de fevereiro do corrente ano, foi aprovado no Senado Federal o Projeto de Lei 2.253/2022 que pretende o condicionamento da progressão de regime à realização do exame criminológico, a ampliação da utilização da monitoração e a extinção do direito à saída temporária para visita à família, sendo mantida a hipótese de saída para frequência a curso, porém com alcance reduzido: excluídos os apenados condenados por crimes hediondos ou cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.

Não foi evidenciado no projeto nenhuma menção ao impacto social, orçamentário ou humanitário das alterações. O aumento dos custos com a execução penal sem a contrapartida de reduzir a população dos presídios, foi a razão do veto da proposta de ampliação da monitoração eletrônica ofertada pela Lei 12.258/10. O impacto do exame criminológico nos custos com a equipe multidisciplinar, o atraso na concessão da progressão de regime e, sobretudo, o posicionamento contrário do Conselho Federal de Psicologia também não foram cogitados pelo projeto. São alterações significativas, com severo impacto no cumprimento da pena já tão negligenciado, conforme constatado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347.

Sem olvidar da gravidade do impacto das pretensões do projeto em relação à monitoração eletrônica e à exigência do exame criminológico, vamos nos ater ao ponto de maior repercussão: a restrição do direito à saída temporária com a promessa de reduzir a criminalidade, evitar a evasão e o aumento da prática de crimes - atribuídos a este direito.  Não se pretende, em nenhuma medida, minimizar a gravidade dos crimes e a dor das vítimas e de seus familiares. O que se questiona, no entanto, é a utilização de momentos de furor coletivo para restrição de direitos fundada em falsas premissas.

É objetivo da execução penal, previsto no art. 1º da LEP, "promover condições para a harmônica reintegração social do apenado". O sistema progressivo de penas, ancorado a este objetivo, permite que o grau de ostensividade do poder punitivo vá reduzindo, ao tempo em que o apenado experimenta, gradativamente, condições mais brandas de cumprimento de pena em regimes de semiliberdade ou liberdade monitorada até finalmente poder cumprir a pena sem vigilância direta ao final do cumprimento da pena.

A saída temporária é direito daquele que cumpre pena em regime semiaberto, mantém bom comportamento e já cumpriu determinada quantidade de pena. Tem por objetivo permitir que o apenado vá retomando os laços familiares e sociais, de que foi privado no período de prisão em regime mais severo.

Havendo a prática de novo crime ou descumprimento das condições impostas para o gozo da saída temporária, o apenado pode ter revogado este direito e, a depender da situação que se apresenta, pode suportar a regressão de regime. É a razão de ser do sistema progressivo de penas: o apenado experimenta regime mais brando de cumprimento de pena e, não conseguindo cumprir as condições, retorna à condição mais gravosa.

Em dados apurados pela Folha de São Paulo[1], no Brasil, 95% dos apenados beneficiados com a saída temporária no Natal retornaram à unidade prisional para dar seguimento do cumprimento de pena. Em Minas Gerais, dos cerca de 3.600 apenados que saíram nesta ocasião, apenas 160 não retornaram, passando a ostentar a condição de foragidos.

Pretender proibir o direito à saída temporária daqueles que cumprem pena em regime semiaberto, como pretende o projeto de lei, corresponde a sancionar toda a população carcerária motivado por atos isolados de alguns indivíduos. Em um cenário em que 95% dos apenados gozam da saída temporária sem intercorrências, valer-se dos 5% que descumprem as condições para negar direitos à totalidade dos apenados, carece de razoabilidade. 

Um novo crime praticado durante a saída temporária ou a evasão sujeitará o autor aos rigores da lei, com consequências penais e também em sua situação processual executória. Tais consequências são significativas, sobretudo em razão do aumento do tempo de encarceramento em regimes mais rigorosos. A sanção é individualizada e alcança aquele que descumpre as regras próprias do direito à saída temporária. Lado outro, o Projeto de Lei mostra-se inconsistente ao defender a extinção de um direito de toda a coletividade encarcerada, que é basilar ao sistema progressivo de penas, a pretexto de assegurar a redução da criminalidade, sobretudo sem qualquer dado empírico que comprove o resultado pretendido. Nega a realidade, agrava o Estados de Coisas Inconstitucional reconhecido pelo STF na ADPF 347 e confere à pena de prisão, de forma reducionista e simplista, a tarefa inalcançável de responder aos anseios por mais segurança.

É certo que a criminologia, as ciências penais e sociais se debruçam desde longa data para aperfeiçoar o sistema penal, de modo a estabelecer limites para conter o exercício do poder punitivo, ao mesmo tempo em que se equaciona o outro objetivo da execução penal, também previsto no art. 1º da LEP, de cumprir as disposições da decisão penal condenatória. A equação perfeita é objeto de desejo ainda não alcançado. Não obstante, nesse tensionamento, deve ser rechaçado o oportunismo político de utilizar se da comoção pública para restrição de direitos. Valemo nos da Constituição que, em suas normas, impõe limites ao exercício do poder punitivo que, como visto, tende à irracionalidade.

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