Dispõe o art. 311 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que, para que haja a decretação da prisão preventiva, é necessária a prévia manifestação do Ministério Público ou da autoridade policial, nos seguintes termos:
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
O desrespeito ao referido dispositivo legal, isto é, a decretação da prisão preventiva sem prévio requerimento da autoridade competente, constitui situação de prisão de ofício, considerada manifestamente ilegal.
Contudo, em relação ao momento da prolação da sentença, há outro dispositivo aplicável, no caso, o art. 387, § 1º, do Código de Processo Penal, que assim dispõe:
Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória:
(...)
§1o O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento de apelação que vier a ser interposta.
Como se pode observar, o referido dispositivo legal menciona a possibilidade de “imposição de prisão preventiva” na sentença, sem menção expressa à necessidade de prévia manifestação do Parquet. Deste modo, estaria o legislador autorizando a situação de prisão de ofício na sentença?
Imagine um caso em que o réu permaneceu em liberdade por toda a instrução processual e que o juiz, ao proferir sentença condenatória, reconheceu a presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva (art. 312 do CPP) e decretou a medida, sem pedido prévio do Ministério Público. Essa atitude seria legítima, ou configuraria ilegalidade, apta a ensejar o relaxamento da prisão?
Existem duas principais interpretações acerca do art. 387, § 1º, do CPP. A primeira delas, adotada por alguns magistrados, tem como base a interpretação literal do artigo. Nesse sentido, o mencionado dispositivo legal não exige, expressamente, a necessidade de manifestação prévia do órgão ministerial. Assim, para os adeptos dessa corrente, a decretação da prisão preventiva de ofício na sentença não configuraria ilegalidade, desde que devidamente fundamentada pelo juízo singular1.
Por sua vez, o segundo posicionamento, adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, tem como base a interpretação sistemática do Código de Processo Penal. Desta forma, busca-se realizar uma leitura conjunta dos artigos 311 e 387, § 1º, ambos do CPP, de modo que a medida acautelatória sempre deverá ser acompanhada de prévio pedido, sob pena de configurar flagrante ilegalidade2.Seguem algumas decisões do STJ que consagram esse entendimento:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO DA PRISÃO PREVENTIVA POR OCASIÃO DA SENTENÇA. IMPOSSIBILIDADE. ANALOGIA AO ENTENDIMENTO FIXADO PELA TERCEIRA SEÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA AO CONCLUIR, EM 24/02/2021, O JULGAMENTO DO RHC 131.263/GO, REL. MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR. AGRAVO DESPROVIDO.1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao concluir em 24/02/2021 o julgamento do RHC 131.263/GO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, fixou orientação no sentido de que o inciso II do art. 310 do Código de Processo Penal não permite que a prisão em flagrante seja, de ofício, convertida em preventiva. 2. Pelo mesmo raciocínio, deve ser reconhecida a ilegalidade da decretação da prisão preventiva por ocasião da sentença, ao Réu que respondeu ao processo em liberdade, sem pedido prévio do órgão acusatório, já que o julgador agiu ex officio, decretando, em verdade, a prisão processual inicial, o que é vedado pelo ordenamento jurídico. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 687.128/DF, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 10/5/2022, DJe de 16/5/2022.)
DIREITO PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO NA SENTENÇA CONDENATÓRIA. CONTRADIÇÃO SANADA. ILEGALIDADE VERIFICADA. REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA. EMBARGOS ACOLHIDOS COM EFEITOS INFRINGENTES.
(...) 4. Também se discute se a decretação de prisão preventiva de ofício pelo Juízo sentenciante, sem prévio requerimento do Ministério Público, é válida à luz do sistema acusatório vigente.
(...) 6. A jurisprudência do STJ, com base nos arts. 311 e 282, § 4º, do CPP, entende que é vedada a decretação de prisão preventiva de ofício pelo juiz, em homenagem ao sistema acusatório, sendo necessária provocação do Ministério Público ou da autoridade policial.
7.A decretação de prisão preventiva de ofício na sentença condenatória, sem provocação do Ministério Público, configura flagrante ilegalidade, conforme entendimento desta Corte Superior.
8.A prisão preventiva do embargante deve ser revogada, com a aplicação das medidas cautelares diversas previstas no art. 319 do CPP, a serem especificadas pelo juízo de primeiro grau.
(...)Tese de julgamento:
1.A prisão preventiva não pode ser decretada de ofício pelo juiz, devendo respeitar a provocação do Ministério Público ou da autoridade policial.
2.A imposição de medida mais gravosa do que a postulada viola o sistema acusatório e a imparcialidade judicial. (...)
(EDcl no AgRg no RHC n. 203.592/PI, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 16/9/2025, DJEN de 22/9/2025, supressões minhas)
Apesar de adotar esse posicionamento, o STJ já decidiu no sentido de que a manifestação posterior do Ministério Público supre o vício, convalidando o ato de decretação da prisão. É o que se extrai do julgamento do AgRg no RHC nº 203.592/PI, que tem como relator o Ministro Joel Ilan Paciornik. Segue a ementa do julgado:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. PRISÃO PREVENTIVA. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO NA SENTENÇA CONDENATÓRIA. MANIFESTAÇÃO POSTERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA MANUTENÇÃO DA SEGREGAÇÃO PROVISÓRIA. VÍCIO SUPERADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
(...) 2. O agravante foi preso preventivamente e, posteriormente, foi concedida a liberdade provisória, com a aplicação de medidas cautelares alternativas ao cárcere. Na ocasião da sentença condenatória, foi decretada novamente a prisão preventiva do agravante, em razão do descumprimento das medidas cautelares.
3.A defesa alega que a prisão preventiva foi decretada de ofício pelo Juízo sentenciante, sem provocação do Ministério Público, contrariando o princípio do sistema acusatório.
II. Questão em discussão
A questão em discussão consiste em saber se a decretação da prisão preventiva de ofício pelo Juízo sentenciante, sem prévio requerimento do Ministério Público, é válida à luz do sistema acusatório vigente.
III. Razões de decidir
A jurisprudência do STJ entende que a posterior manifestação do Ministério Público pela necessidade da manutenção da prisão preventiva do acusado supre o vício decorrente da decretação da constrição de ofício.
(...) IV. Dispositivo e tese
Agravo desprovido.
Tese de julgamento: "1. A posterior manifestação do Ministério Público pela manutenção da prisão preventiva supre o vício de decretação da constrição de ofício. 2. O descumprimento das medidas cautelares alternativas e a condição de foragido do acusado justifica a manutenção da prisão preventiva para garantir a ordem pública e a aplicação da lei penal". (...)
(AgRg no RHC n. 203.592/PI, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 5/8/2025, DJEN de 14/8/2025, supressões minhas)
Tal decisão, que permite que o vício seja sanado, representa uma clara flexibilização da própria interpretação dada pela Corte Superior, o que, segundo Aury Lopes Jr. “se insere na perigosa linha de relativização de nulidades e regras do devido processo” (2025, p. 99).
À luz da análise desenvolvida, tendo em vista as duas correntes apresentadas, é necessário tecer algumas considerações. Dentre os posicionamentos explorados, parece mais adequada a corrente de interpretação sistemática do Código, por trazer à baila a necessidade de construir uma prática processual penal coerente e comprometida com as garantias processuais.
Em um país onde se adota o sistema processual acusatório, a atuação do magistrado, em regra, depende de prévia provocação das partes, o que deve ser o caso da decretação da prisão preventiva, independentemente da fase na qual o processo se encontra.
Da mesma forma entende Aury Lopes Jr., nos seguintes termos:
A imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz-instrutor (poderes investigatórios) ou, pior, quando ele assume uma postura inquisitória decretando – de ofício – a prisão preventiva. É um contraste que se estabelece da posição totalmente ativa e atuante do inquisidor e a inércia que caracteriza o julgador. Um é sinônimo de atividade e o outro de inércia.
Assim, ao decretar uma prisão preventiva de ofício, assume o juiz uma postura incompatível com aquela exigida pelo sistema acusatório e, principalmente, com a estética de afastamento que garante a imparcialidade. (2025, p. 98)
Assim, deve-se priorizar a realização de interpretação sistemática dos textos normativos, levando-se em conta não apenas a redação isolada de um artigo, mas todo o conjunto de dispositivos legais concernentes à matéria, com vistas a assegurar a promoção dos princípios protegidos pela legislação pátria.
1.Esta corrente é adotada em diversos julgamentos das Câmaras Criminais do TJMG, como se pode extrair, por exemplo, dos Habeas Corpus de nº 1.0000.25.325185-4/000 (1ª Câmara Criminal), 1.0000.25.155778-1/000 (3ª Câmara Criminal), 1.0000.25.125651-7/000 (5ª Câmara Criminal) e 1.0000.25.318234-9/000 (6ª Câmara Criminal). Contudo, existem decisões que entendem pela ilegalidade da decretação, o que demonstra a existência de controvérsia jurisprudencial acerca do tema.
2.Algumas decisões do TJMG que adotam esse posicionamento são, por exemplo, o julgamento dos Habeas Corpus de nº 1.0000.25.399824-9/000 (5ª Câmara Criminal), 1.0000.25.261848-3/000 (6ª Câmara Criminal) e 1.0000.25.326143-2/000 (8ª Câmara Criminal).
Referências
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC n. 687.128/DF, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 10 mai. 2022, DJe de 16 mai. 2022.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no RHC n. 203.592/PI, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 5 ago. 2025, DJEN de 14 ago. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EDcl no AgRg no RHC n. 203.592/PI, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 16 set. 2025, DJEN de 22 set. 2025.
LOPES JR., Aury. Prisões Cautelares e Habeas Corpus. 10. ed. – São Paulo: Saraiva Jur, 2025. Disponível em: Minha Biblioteca. Acesso em: 25 nov. 2025.
Maya Chaves Machado Borges é Associada do ICP Jovem. Estagiária da 9ª Câmara Criminal Especializada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Graduanda do curso de Direito da Faculdade de Direito da UFMG.