26/09/2025

A Emendatio Libelli e a Dessincronia do Processo Penal Comum com o Sistema Acusatório e o Ordenamento Jurídico Brasileiro

A principiologia que rege o Direito Processual Penal, de raízes ligadas a um novo constitucionalismo latino-americano posterior a um período repressivo de ditaduras militares na América do Sul ao longo do século XX, trouxe a proposta de um giro na relação entre o Estado e o particular, limitando o poder punitivo por meio de princípios representados por direitos e garantias fundamentais.

Princípios como o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF/88) e o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) propuseram um rompimento com uma ação estatal autoritária diante daquele, muitas vezes de maneira arbitrária, considerado desviante. 

Contudo, na prática, em 2025, mais de trinta anos após a Constituição Federal de 1988, percebe-se uma hipertrofia do sistema penal, caracterizada pelo encarceramento em massa e pela intensificação da pretensão punitiva do poder público, mesmo sob a égide de uma normatividade mais democrática.

Conforme evidenciado por PRADO e LOPES JR, formou-se uma contradição evidente: embora o novo texto constitucional preveja um sistema acusatório, o Código de Processo Penal pátrio, mantido desde a época do Estado Novo, apesar de reformas ao longo das décadas, preserva uma essência inquisitória. 

Um exemplo expressivo é o polêmico instituto da emendatio libelli, que outorga ao magistrado a prerrogativa de produzir uma sentença condenatória por tipo penal distinto daquele que consta na denúncia, invadindo, dessa forma, segundo MARQUES e MALAN, a prerrogativa de imputação acusatória que deveria ser exclusiva do polo ativo da ação penal, em uma atuação evidentemente inquisitória e contrária à necessidade de correlação entre denúncia e sentença.

O artigo 383 do Código de Processo Penal descreve:

Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 1º Se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 2º Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

Sinteticamente, tal instituto permite que o juiz altere, de ofício, a tipificação da conduta imputada, mesmo que isso extrapole a correlação com o pedido ministerial e implique condenação por tipo penal mais grave.

Embora haja quem sustente, nos termos da lei, que não ocorre modificação fática naquilo que foi descrito na peça acusatória e verificado ao longo da instrução, o que se tem é que cada tipo penal possui elementares próprias e pressupostos de aferição, resultando em estratégias defensivas distintas. Logo, é pouco plausível afirmar que se mantém a mesma cognição dos fatos se os meios de subsunção à norma penal foram alterados. Assim, a alegada inalteração da descrição fática revela-se muito mais uma construção teórica do que uma realidade prática.

Ressalte-se, ainda, que o juiz não é obrigado a intimar as partes sobre a mudança do tipo penal, podendo realizá-la de ofício, o que representa evidente violação tanto ao contraditório e à ampla defesa quanto às prerrogativas do Ministério Público.

Apesar de existirem diversas obras e estudos que exploram as problemáticas do instituto da emendatio libelli, o presente texto pretende, sobretudo, direcionar o olhar para outros diplomas normativos brasileiros, evidenciando o isolamento do Código de Processo Penal no contexto legislativo nacional.

No âmbito do Direito Penal Militar, constata-se que o Conselho de Justiça somente pode condenar o réu por tipo penal diferente do descrito na denúncia se a alteração for proposta pelo órgão ministerial em suas alegações finais, com a devida intimação da defesa acerca da nova tipificação.

Cite-se:

Definição do fato pelo Conselho
Art. 437. O Conselho de Justiça poderá:
a) dar ao fato definição jurídica diversa da que constar na denúncia, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave, desde que aquela definição haja sido formulada pelo Ministério Público em alegações escritas e a outra parte tenha tido a oportunidade de respondê-la;

Condenação e reconhecimento de agravante não arguida
b) proferir sentença condenatória por fato articulado na denúncia, não obstante haver o Ministério Público opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravante objetiva, ainda que nenhuma tenha sido arguida. (BRASIL, 1969)

Além disso, o Conselho de Justiça pode reconhecer uma agravante não levantada pelo Ministério Público, desde que vinculada à classificação legal discutida, bem como decidir pela condenação mesmo quando o parecer ministerial seja pela absolvição.

Portanto, a rigor, o Juízo na Justiça Militar não pode alterar, por iniciativa própria, a tipificação do crime; e, mesmo em caso de mudança proposta pelo Ministério Público, a defesa é intimada a se manifestar, mantendo sempre a última palavra antes da análise do mérito pelo Conselho de Justiça.

Curiosamente, de acordo com ARAÚJO, o Código de Processo Penal Militar, neste ponto, revela-se mais compatível com as garantias processuais pós-Constituição de 1988 do que o Código de Processo Penal comum, observando de forma mais rigorosa o contraditório, a ampla defesa e as prerrogativas do Juízo e do Ministério Público em um sistema acusatório.

Cabe também observar que, no Código de Processo Civil de 2015, o artigo 10 veda decisão judicial baseada em fundamento sobre o qual as partes não tenham tido oportunidade de se manifestar, mesmo quando se trate de matéria passível de ser decidida de ofício:

Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Diante disso, segundo BADARÓ, a existência de um mecanismo como a emendatio libelli no CPC/2015 seria inadmissível, pois configuraria afronta direta ao princípio do contraditório e da ampla defesa.

O quadro que se desenha é o de um Processo Penal comum que se distancia nitidamente das demais práticas processuais previstas no ordenamento brasileiro e da própria Constituição Federal de 1988.

Condutas que em outras áreas do Direito seriam consideradas extra petita ou violadoras de princípios como a não surpresa, o contraditório e a ampla defesa, tornaram-se plenamente aceitas na rotina processual penal, que permanece fechada em paradigmas mais próximos do punitivismo inquisitório do que da adequação ao viés democrático, relativizando constantemente o texto legal e as garantias reconhecidas pela jurisprudência.

A ausência de reforma de institutos como a emendatio libelli no CPP contrasta com a postura mais garantista do CPPM e do CPC/2015. É digno de nota que, enquanto o CPPM foi promulgado durante a ditadura militar brasileira, o CPC/2015 surgiu já na Nova República, em contexto democrático. Apesar dos contextos históricos radicalmente distintos, ambos adotam, no aspecto específico da vinculação da sentença à acusação, posicionamento mais condizente com o devido processo legal do que o Código de Processo Penal. 

Tal constatação deveria, por si só, provocar nos operadores do Direito uma reflexão crítica sobre a naturalização de práticas inadequadas no exercício da jurisdição penal.

Notas:

 PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório - A conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

 LOPES JR., Aury Celso Lima. Direito processual penal: e sua conformidade constitucional; 2.v. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

3 MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. A exclusividade da função acusatória e a limitação da atividade do Juiz - Inteligência do princípio da separação de poderes e do princípio acusatório. Brasília, a. 46, n. 183, jul./set. 2009.

MALAN, Diogo Rudge. A Sentença Incongruente no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

FERRAZ FILHO, Valdemar de Souza. Emendatio libelli e a sua (in)compatibilidade com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. UCSAL. Salvador, 2021.

6 RAUJO, C. dos S. Emendatio libelli e mutatio libelli no processo penal militar: Emendatio libelli and mutatio libelli in military criminal procedure. Brazilian Journal of Development, v. 8, n. 10, p. 69820–69829, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.34117/bjdv8n10-321.

7 BADARÓ, Gustavo. Correlação entre acusação e sentença: releitura da emendatio libelli à luz do contraditório sobre as questões de direito, no novo Código de Processo Civil. Capítulo de livro presente na obra de Antonio Eduardo Ramires Santoro; Flávio Mirza Maduro (Orgs.). Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 357-378.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAUJO, C. dos S. Emendatio libelli e mutatio libelli no processo penal militar: Emendatio libelli and mutatio libelli in military criminal procedure. Brazilian Journal of Development, v. 8, n. 10, p. 69820–69829, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.34117/bjdv8n10-321.

BADARÓ, Gustavo. Correlação entre acusação e sentença: releitura da emendatio libelli à luz do contraditório sobre as questões de direito, no novo Código de Processo Civil. Capítulo de livro presente na obra de Antonio Eduardo Ramires Santoro; Flávio Mirza Maduro (Orgs.). Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 357-378.

FERRAZ FILHO, Valdemar de Souza. Emendatio libelli e a sua (in)compatibilidade com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. UCSAL. Salvador, 2021.

JUCÁ, Leonardo. A emendatio libelli in pejus de ofício na Justiça Militar. JusBrasil, 10 dez. 2022. Disponível em: JusBrasil. Acesso em: 14 ago. 2025.

LOPES JR., Aury Celso Lima. Direito processual penal: e sua conformidade constitucional; 2.v. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

MALAN, Diogo Rudge. A Sentença Incongruente no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. A exclusividade da função acusatória e a limitação da atividade do Juiz - Inteligência do princípio da separação de poderes e do princípio acusatório. Brasília, a. 46, n. 183, jul./set. 2009.

POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. IBCCRIM, 2008.

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório - A conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SCARANCE FERNANDES, Antonio. A Mudança do Fato ou da Classificação no Novo Procedimento do Júri. Boletim do IBCCrim, n. 188, jul. 2008.

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cursando especialização em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Experiência acadêmica e prática voltada para Direitos Humanos, Direito Penal e Direito Processual Penal.

Atuação profissional como estagiário de pós-graduação na 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), com passagens pela Defensoria Pública de Minas Gerais, Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região e em escritório de advocacia.

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