08/07/2025

A crise do bem jurídico e a tutela penal de sentimentos

Especialmente por influência da tradição jurídica aglo-saxã, nos últimos anos, tem sido observado um movimento de expansão simbólica do Direito Penal, baseado na incorporação de sentimentos subjetivos como fundamentos autônomos de legitimação da proibição penal. Dentro desta perspectiva, a máxima garantista do nulla necessitas sine injuria1 cede espaço à tutela de estados psíquicos, sustentando-se a intervenção penal não apenas diante de condutas causadoras de danos concretos, mas também frente a comportamentos que provoquem estados mentais indesejados, como a repulsa, a aversão, a indignação, o nojo e várias outras condições desagradáveis2.

É diante dessa conjuntura de enfraquecimento de postulados garantistas, marcado – dentre outros mais – pelo desprestígio à teoria bem jurídico, que desponta a discussão quanto à (preocupante) subjetivação das hipóteses normativas de delito, que confluem a um esquema punitivo eminentemente substancialista3 e decisionista4, em que a hipótese normativa de desvio é simultaneamente "sem ação" e "sem fato ofensivo"5.

Contra esse cenário de dissolução do conjunto de garantias substanciais, Claus Roxin e Luís Greco, na obra Direito Penal - Parte Geral: Tomo I – que agora conta com tradução inédita para o português – oferecem importantes contribuições para a discussão afeta aos limites materiais da intervenção punitiva estatal, estabelecendo como premissa inicial a necessidade de que o Direito Penal se oriente pela tutela de bens jurídicos indispensáveis ao livre desenvolvimento do indivíduo e à realização de seus direitos fundamentais6.

Partindo de uma tradição liberal que se ancora em uma acepção negativa de liberdade, os autores defendem que a tutela penal somente se justifica quando voltada à preservação das condições mínimas de coexistência livre e pacífica em sociedade, isto é, para proteger a liberdade do indivíduo contra intervenções determinadas por terceiros7. Nesta perspectiva, deve ser rejeitada qualquer pretensão do Direito Penal em afastar os cidadãos de emoções negativas ou sentimentos de aversão, uma vez que não é possível determinar, objetivamente, os limites da liberdade alheia com base na variação de impressões emocionais personalíssimas8.

Neste tocante, é importante traçar uma importante distinção entre a proteção de sentimentos – enquanto reações emocionais de caráter volátil e subjetivo – e a tutela de situações que afetam diretamente a liberdade de autodeterminação dos indivíduos. Roxin, que em edições anteriores de sua obra parecia encontrar certa legitimidade na utilização da percepção subjetiva de segurança como parâmetro de criminalização, passou a revisar essa posição, reconhecendo que “a razão fundamental para uma punição não reside no sentimento, mas na afetação da convivência pacífica e livre que o acompanha"9.

Assim, o sentimento, enquanto dimensão subjetiva do indivíduo, somente poderá ser considerado penalmente relevante e merecedor da tutela penal na medida em que levar à renúncia de direitos fundamentais relacionados à esfera de liberdade do indivíduo ou impor óbices ao exercício da sua vontade. É, precisamente, esse aspecto de restrição à autodeterminação do indivíduo, e não a experiência subjetiva do medo ou da repulsa em si mesma, que poderá justificar, portanto, a reação penal.

A título de exemplificação desta diretriz teórica, pode-se tomar como referência os delitos contra a honra, que bem resistem à crítica dirigida à subjetivação da tutela penal, justamente por não se limitarem à proteção de emoções individuais, senão por se vincularem, na verdade, à proteção da capacidade de autodeterminação humana. Nessa hipótese, a proibição não se coloca em razão da simples experiência emocional do ofendido, mas pela violação à esfera de liberdade. Afinal, aquele que não está seguro de sua honra, pode acabar compelido a se retirar de espaços públicos para se proteger10.

A perspectiva se altera, por outro lado, quando nos debruçamos sobre o delito previsto no art. 208 do Código Penal11, cujo objeto de tutela é o sentimento religioso. Neste caso, muito embora setores da doutrina defendam a legitimidade do tipo penal ao argumento de que se deve buscar proteger interesses ético-sociais relevantes para o corpo social12 e/ou a liberdade de culto13, é possível notar que a figura típica se relaciona, com muito mais intensidade, com uma sensibilidade individual, que ora exprime uma tentativa de preservação de dogmas ou valores morais, ora traduz uma sensação de contrariedade vivenciada pelos fiéis diante de manifestações desrespeitosas14.

A referida noção de sentimento religioso, porém, se esbarra novamente no filtro material de legitimidade proposto pela teoria do bem jurídico: sentimentos religiosos, enquanto expressões de valores morais e subjetivos, não podem servir de parâmetro para a intervenção penal em um Estado laico. A esse respeito, já advertia Ferrajoli sobre a necessidade de se distinguir as esferas do direito e da moral, a partir da ideia de que o direito não deve se ocupar de reproduzir os ditames da moral ou de qualquer outro sistema metajurídico – divino, natural ou racional –, sendo tão somente o produto de convenções legais positivadas que não estão predeterminadas ontologicamente nem mesmo axiologicamente15.

É relevante citar, por fim, outro exemplo que contribui para ilustrar a necessária distinção entre a ofensa a sensibilidades particulares e a efetiva afetação ao exercício da liberdade individual: o delito de assédio sexual, tipificado no art. 216-A do Código Penal por meio da redação seguinte:

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

Não obstante o verbo "constranger" não exprima com satisfatória precisão técnica a natureza do bem jurídico tutelado –, já que aparenta apontar muito mais para uma análise subjetiva do estado emocional da vítima, em vez de conferir maior enfoque à objetiva limitação à sua autonomia –, uma leitura adequada da norma penal incriminadora à luz da teoria do bem jurídico permite concluir que o tipo se destina a proteger a liberdade de autodeterminação sexual no âmbito das relações laborais, e não meramente resguardar sentimentos individuais relativos à experiência de constrangimento.

É bem verdade, porém, que o Código Penal Alemão, ao incorporar um novo tipo penal de assédio ou importunação sexual (§ 184i StGB) cuja descrição típica exige a realização de toque físico de maneira sexualmente específica, logrou estabelecer uma solução normativa mais adequada para o problema da delimitação das fronteiras entre comportamentos penalmente relevantes e manifestações de desconforto subjetivo, superando a defasagem apresentada pelo tipo na legislação brasileira.

Sem pretensão de esgotar à temática, dada a elevada complexidade que a permeia a discussão e, ao mesmo tempo, as limitações de extensão impostas a este trabalho, o que se procurou foi apenas delinear, com modesta contribuição analítica, a partir de exemplos pontuais, os riscos envolvidos na adoção de sentimentos individuais como referenciais de criminalização, em detrimento de lesões objetivamente identificáveis.

Não se olvida que persistem, ainda, considerações não exploradas sobre o tema, que, decerto, demandam maior atenção e aprofundamento dogmático. Contudo, sob a máxima de que a função precípua do Direito Penal é assegurar aos cidadãos uma coexistência livre e pacífica sob a égide de todos os direitos e garantias fundamentais constitucionalmente tutelados16 , é possível concluir, sumariamente, que a convivência em uma sociedade pluralista e multicultural exige a tolerância jurídica não somente ao dissenso moral, como a toda atitude ou conduta que não represente lesividade a terceiro17.

NOTAS:

1 Como decorrência da separação entre direito e moral dentro de um modelo garantista clássico, Ferrajoli, por meio da fórmula nulla necessitas sine injuria, consagra o princípio da lesividade como fundamento axiológico da proibição penal. Para o autor, a legitimidade material da norma penal deve estar condicionada pela produção de uma lesão à esfera de liberdade ou de direito de terceiros, de tal sorte que o Direito Penal deve se pautar pela prevenção dos “mais graves custos individuais e sociais representados por efeitos lesivos". Nesse sentido, cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 372-374.

2 A premissa encontra sua formulação mais sofisticada na obra “The Moral Limits of Criminal Law”, produzida pelo jurista americano Joel Feinberg. Ao lado do princípio do dano (harm principle) – já estabelecido por John Stuarl Mill desde 1859 –, Feinberg introduz um princípio autônomo, denominado offense principle, o qual oferece fundamentos para legitimar a interdição do Direito Penal na repressão de condutas que, embora não causem males tão graves quanto o dano, produzem experiências e estados mentais desagradáveis ao sujeito. Cf. FEINBERG, Joel. Offense to others: the moral limits of the criminal law. Vol. 2. New York: Oxford University Press, 1985, p. 25.

3 Denomina-se substancialista a concepção segundo a qual “o objeto de conhecimento e de tratamento penal não é apenas o delito enquanto formalmente previsto na lei, mas o desvio criminal enquanto em si mesmo imoral ou anti-social e, para além dele, a pessoa do delinqüente, de cuja maldade ou anti-sociabilidade o delito é visto como uma manifestação contingente, suficiente, mas nem sempre necessária para justificar a punição” Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 35.

4 Ferrajoli define o decisionismo como “efeito da falta de fundamentos empíricos precisos e da conseqüente subjetividade dos pressupostos da sanção nas aproximações substancialistas e nas técnicas conexas de prevenção e de defesa social”. O processo se traduz, assim, em duas consequência essenciais: a primeira, relativa a uma perversão inquisitiva do processo, que passa a ser dirigida não no sentido da comprovação de fatos objetivos, mas no sentido da análise da interioridade da pessoa julgada; a segunda, referente à degradação da verdade processual, que deixa de ser concebida como uma reconstrução empírica, intersubjetivamente controlável, dos fatos, para tornar-se um convencimento subjetivo e irrefutável do julgador, com base em juízos morais, estigmas ou expectativas presuntivas de perigosidade. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 80.

5  FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 80.

6  ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Direito Penal: Parte Geral. Tomo I. 5. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2024, p. 90.

7 Ibidem, p. 91.

8 Ibidem, p. 105.

9 Ibidem, p. 102.

10 Ibidem.

11 Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.

12 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol. 3. Parte especial (Arts. 155 a 212). 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2008, p. 407.

13 PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal Brasileiro. Vol. 5. Parte especial (Arts. 155 a 249). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 428-429.

14 VIANNA, Túlio; MIRANDA, Lucas. Crimes contra o sentimento religioso: uma interpretação conforme a Constituição da República de 1988. In: REALE, Miguel; ASSIS MOURA, Maria Thereza. Coleção 80 anos do Código Penal. 1. ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, v. 4, p. 225-226.

15 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 175.

16 ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Direito Penal: Parte Geral. Tomo I. 5. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2024, p. 90.

17 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 372.

REFERÊNCIAS:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol. 3. Parte especial (Arts. 155 a 212). 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2008.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.

FEINBERG, Joel. Offense to others: the moral limits of the criminal law. Vol. 2. New York: Oxford University Press, 1985.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal Brasileiro. Vol. 5. Parte especial (Arts. 155 a 249). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Direito Penal: Parte Geral. Tomo I. 5. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2024.

VIANNA, Túlio; MIRANDA, Lucas. Crimes contra o sentimento religioso: uma interpretação conforme a Constituição da República de 1988. In: REALE, Miguel; ASSIS MOURA, Maria Thereza. Coleção 80 anos do Código Penal. 1. ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, v. 4, p. 205-247.

Vice-presidente ICP Jovem Presidente da Liga Acadêmica de Direito e Processo Penal da UFMG - LADPEN Oradora da equipe vice-campeã da V Competição Brasileira de Direito e Processo Penal Foi monitora de Direito Penal I e II Estagiária no escritório Barroso & Coelho Advocacia Representante discente titular do Departamento de Direito e Processo Penal da UFMG.

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