25/01/2019

O princípio da insignificância nos tribunais superiores: uma crítica à crescente limitação da sua eficácia principiológica

Paula Brener

Desenvolvido por Roxin em 1970, o princípio da insignificância tornou-se um dos mais importantes instrumentos dogmáticos de política criminal, operando como um “freio ao poder punitivo do Estado”[1].

Parte-se da ideia de que não basta a verificação formal da tipicidade, pela simples adequação à descrição legal. O tipo penal é também composto por elementos valorativos, de forma que a sua completude requer a verificação de seu aspecto material. Nesse plano, desenvolve-se a eficácia do princípio da insignificância como instrumento de interpretação restritiva do tipo e “diretriz delimitadora da tipicidade material”[2].  Orientado pelas ideias de subsidiariedade e intervenção mínima, consubstancia-se na ideia de lesividade, de modo que, diante de comportamentos que representem uma ínfima ofensividade ao bem jurídico, não se deve recorrer a soluções pelo Direito Penal.

Apesar de sua tradicional eficácia delimitadora, a interpretação dos tribunais superiores brasileiros vem continuamente limitando o princípio da insignificância. Firmou-se o entendimento do STF condicionando sua aplicação à: “mínima ofensividade da conduta”, “nenhuma periculosidade social da ação”, “grau reduzido de reprovabilidade do comportamento” e “inexpressividade da lesão jurídica provocada”. Afastou-se ainda a possibilidade de sua configuração diante da “contumácia” delitiva.[3] Essa objetivação, contudo, por meio de critérios pautados no desvalor da ação e do resultado, desconsidera a subjetividade do agente e a discussão de sua culpabilidade.

No final de 2017 foram publicadas duas súmulas firmando o entendimento do STJ pela inaplicabilidade do princípio da insignificância a crimes contra a administração pública[4] e a crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas[5].

Embora os problemas da violência doméstica e da corrupção integrem a agenda político-criminal mundial, sendo objeto de clamor de inúmeros grupos da sociedade civil, seu enfrentamento não deveria se desenvolver pelo esvaziamento de princípios e desconsiderando as construções dogmáticas.

Compreendendo-se a função do Direito Penal como a de proteção subsidiária de bens jurídicos[6], o que se percebe é uma simplificação dos problemas pela criação de enunciados que acabam por estabelecer uma hierarquização de bens jurídicos. Estabelece-se uma preponderância, por exemplo, da administração pública frente à vida, à liberdade, ou ao meio ambiente.

Ainda que se considere ser a função do Direito Penal a proteção da vigência das normas jurídicas[7], permanece a carência de fundamentação para a hierarquização dessas normas. Afinal, para essa teoria deve-se mensurar o prejuízo causado à vigência da norma, sendo inadmissível esse desvalor seletivamente objetivizado.

Embora o contexto atual de complexificação da criminalidade, torne necessária a busca por novas técnicas de enfrentamento ao crime, deve-se ter em mente que os princípios são concebidos como normas dotadas de função ordenadora e como delimitadores das regras, não podendo “ser tratados como meros enunciados, mas como normas integrantes de uma determinada estrutura, no caso, a estrutura jurídica do Estado”[8].

A coerência e sistematicidade do aprimoramento do ordenamento jurídico-penal buscado deve se desenvolver aliado à construção doutrinária da dogmática penal, mantendo-se o equilíbrio entre a política-criminal, as expectativas sociais e a arte do justo.

 

Referências bibliográficas

BADARÓ, Tatiana. Bem Jurídico-Penal supraindividual. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.

BOTTINI, Pierpaolo Cruz; OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de; PAPA, Douglas de Barros Ibarra; RIBEIRO; Thaísa Bernhardt. A confusa exegese do princípio da insignificância e sua aplicação pelo STF: análise estatística de julgados. Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCrim, nº98, pp.117-148, 2012.

BRODT, Luís Augusto Sanzo (org.). Criminalidade econômica em debate. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2018.

JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos? Sobre a legitimação do Direito Penal. Trad. Pablo rodrigo Alflen. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

MARTINELLI, João Paulo Orsini. Em defesa do princípio da insignificância no direito penal. Boletim IBCCRIM, ano 19, nº 225, pp.15-16, ago. 2011.

ROXIN, Claus. A proteção dos bens jurídicos como função do Direito Penal. Trad. par. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.

[1] MARTINELLI, João Paulo Orsini. Em defesa do princípio da insignificância no direito penal. Boletim IBCCRIM, ano 19, nº 225, pp.15-16, ago. 2011, p.15.

[2] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; et. alia. A confusa exegese do princípio da insignificância e sua aplicação pelo STF: análise estatística de julgados. Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCrim, nº98; pp.117-148, 2012.

[3] BRASIL. HC 119844 AgR/MG, Relator Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, Julgamento: 29/06/2018,  DJe-157  DIVULG 03-08-2018  PUBLIC 06-08-2018.

[4] Destaca-se: “Súmula 599 - O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública”. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Corte Especial, Data da Publicaçao: 27/11/2017.

[5] “Súmula 589 - É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticadas contra a mulher no âmbito das relações domésticas”. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Terceira Seção, Data da Publicação: 18/09/2017.

[6] ROXIN, Claus. A proteção dos bens jurídicos como função do Direito Penal. Trad. par. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

[7] JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos? Sobre a legitimação do Direito Penal. Trad. Pablo rodrigo Alflen. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p.47.

[8] TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p.33.

Paula Brener: Presidente do ICP Jovem. Advogada no escritório Felipe Martins Pinto Advocacia Criminal. Mestranda na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais.

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