A segurança pública é objeto de proteção constitucional, nos termos do artigo 144 da Constituição Federal [1], porquanto seu exercício é imprescindível para a convivência harmônica entre os indivíduos no seio da sociedade. Dada a sua importância, admite-se, em determinadas hipóteses, a relativização de outros direitos fundamentais em face da efetiva defesa da segurança coletiva. É nesse contexto que se autoriza a mitigação dos direitos à intimidade e à privacidade - consagrados no artigo 5°, inciso X, da Magna Carta –, bem como à liberdade individual, por meio das abordagens realizadas pela autoridade policial, em que se procedem às chamadas "buscas pessoais", com o fim de – ao menos, em tese – preservar a integridade dos cidadãos e reprimir a criminalidade.
A busca pessoal - aquela que incide diretamente sobre o corpo do sujeito [2] - é medida excepcional, admitida quando houver fundada suspeita de que o indivíduo esteja na posse de qualquer objeto relacionado à prática de um delito. Tal diligência encontra respaldo no artigo 244 do Código de Processo Penal, que dispõe [3]:
“A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papeis que constituam corpo de delito, podendo ser efetuada por qualquer autoridade policial.”
De plano, é evidente que a expressão “fundada suspeita” é vaga e imprecisa, conduzindo a diversas interpretações no tocante à sua definição. O texto legal não trouxe critérios objetivos a serem observados, de modo a transferir ao agente público a discricionariedade de decisão sobre quando realizar ou não a busca pessoal, o que pode implicar em arbitrariedades e violações aos direitos e garantias fundamentais [4].
A análise da legitimidade da busca pessoal se mostra ainda mais urgente quando, em um país marcado por desigualdade social e racismo estrutural, há grupos sociais que são sistematicamente estigmatizados como vinculados à criminalidade. Assim, a abstratividade do instituto em questão conduz a práticas discriminatórias camufladas de legalidade, com a seleção de eventuais criminosos baseada em grupos historicamente marginalizados [5]. A esse respeito, diversas pesquisas realizadas desde os anos 1960 apontam que os suspeitos da polícia são, desproporcionalmente, jovens negros moradores de bairros periféricos. É, assim, evidente que há um padrão de atuação policial que perpetua e intensifica o racismo ao conferir maior vigilância dirigida à população negra. Conforme pontuado em pesquisa de campo realizada em batalhões da PMESP:
“Os enquadros se dirigem desproporcionalmente aos rapazes negros moradores de favelas dos bairros pobres das periferias. Dados similares quanto à sobrerrepresentação desse perfil entre os suspeitos da polícia são apontados por diversas pesquisas desde os anos 1960 até hoje e em diferentes países do mundo. Trata-se de um padrão consideravelmente antigo e que ainda hoje se mantém, de modo que, ao menos entre os estudiosos da polícia, não existe mais dúvida de que o racismo é reproduzido e reforçado através da maior vigilância policial a que é submetida a população negra” [6]
Nota-se que os efeitos da mentalidade escravista perduram nos dias atuais, se manifestando por meio da repressão criminal. Esse entendimento alinha-se ao que foi decidido no julgamento do paradigmático RHC 158.580, a saber:
7. Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos –– diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade. [7]
Nesse cenário, considerando que o poder/dever da preservação da ordem pública por meio do policiamento preventivo/repressivo colide com princípios fundamentais, como os direitos à inviolabilidade da intimidade, à privacidade e a à liberdade [8], é imperiosa a construção de parâmetros jurídicos claros para determinar a “fundada suspeita”.
A ausência destes critérios concretos e aferíveis, além de contribuir para práticas estatais discriminatórias e a seletividade racial, auxilia na baixa taxa de eficácia nas abordagens. Há grande discrepância entre a efetividade prática da abordagem policial e o comprometimento aos direitos fundamentais que ela proporciona, segundo dados extraídos do aludido RHC 158.580:
11. Mesmo que se considere que todos os flagrantes decorrem de busca pessoal – o que por certo não é verdade –, as estatísticas oficiais das Secretarias de Segurança Pública apontam que o índice de eficiência no encontro de objetos ilícitos em abordagens policiais é de apenas 1%; isto é, de cada 100 pessoas revistadas pelas polícias brasileiras, apenas uma é autuada por alguma ilegalidade. É oportuno lembrar, nesse sentido, que, em Nova Iorque, o percentual de “eficiência” das stop and frisks era de 12%, isto é, 12 vezes a porcentagem de acerto da polícia brasileira, e, mesmo assim, foi considerado baixo e inconstitucional em 2013, no julgamento da class action Floyd, et al. v. City of New York, et al. pela juíza federal Shira Scheindlin. [9]
Observa-se que apenas 1% das abordagens policiais resultam em autuações, o que reforça a necessidade de controle jurídico mais rigoroso sobre a atuação policial. Isso porque, indicar com precisão aos agentes de segurança pública quais são, de fato, os indícios concretos de que há uma situação de flagrante delito em desenvolvimento, permite que atuem de forma mais orientada e diminuam a realização de abordagens desnecessárias. Além disso, as práticas abusivas por parte da autoridade policial seriam atenuadas com a redução da amplitude do dispositivo, uma vez que seria possível demonstrar o abuso de autoridade quando perpetrado [10].
Reconhecendo a imprecisão normativa e suas consequências nefastas, a jurisprudência tem se debruçado para delinear o conceito de “fundada suspeita”. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reiterado que circunstâncias meramente subjetivas, a exemplo do nervosismo do indivíduo e expressões corporais interpretadas como suspeitas, não configuram justa causa para a busca pessoal. Nesse sentido, a Egrégia Corte consignou no REsp nº 1.961.459/SP que:
“Ocorre que, no caso dos autos, a busca pessoal realizada pelos policiais foi justificada apenas com base no fato de que o Acusado, que estava em local conhecido como ponto de venda drogas, ao avistar a viatura policial, demonstrou nervosismo. No entanto, a percepção de nervosismo por parte do agente policial - posteriormente confirmada pela apreensão de objetos ilícitos - é dotada de excesso de subjetivismo e, por isso, não é suficiente para caracterizar a fundada suspeita, que exige mais do que mera desconfiança por parte dos agentes públicos” [11]
De igual sorte, denúncias anônimas, por si sós, também não justificam a abordagem policial, conforme entendimento firmado no HC 734.263:
2. Hipótese em que, da mera leitura dos fatos constantes na sentença, exsurge a ilegalidade da revista pessoal e veicular realizada, uma vez que fundada apenas em denúncia anônima, sem qualquer outro elemento concreto que demonstrasse a justa causa para a diligência policial. [12]
Ademais, a busca pessoal prescindida de mandado judicial não é autorizada com finalidade preventiva ou repressiva, ou seja, praticadas como “rotina” do policiamento ostensivo; mas somente como medida de natureza investigativa e probatória, que exige motivação correlata, em linha com a orientação firmada no já citado HC 158.850:
2. Entretanto, a normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo) que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata. [13]
Ante o exposto, é essencial este maior rigor na fundamentação da busca pessoal e a exigência de elementos concretos pelo Poder Judiciário, uma vez que a busca pessoal afeta diretamente a liberdade individual. A atuação policial que realiza perfilamento racial e se sustenta em indícios subjetivos deve ser veementemente rechaçada, sob pena de perpetuação de práticas estatais arbitrárias e discriminatórias.
REFERÊNCIAS
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em:
[2] LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2025.
[3] BRASIL. Código de processo penal. Disponível em:
[4] BIZZOTO, Alicia de Brito. A revista pessoal e a (in)fundada suspeita na abordagem policial: Bacharelado em Direito. Goiânia, 2024. Trabalho de Conclusão de Curso - Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Disponível em: https://repositorio.pucgoias.edu.br/jspui/handle/123456789/8015. Acesso em: 15 abr. 2025.
[5] Bonaccorsi, D. (2024). A decisão no Habeas Corpus 208.240 do Supremo Tribunal Federal a partir de uma análise criminológica. Revista Brasileira De Ciências Criminais, 204(204). https://doi.org/10.5281/zenodo.12628317.
[6] DA MATA, Jéssica, A Política do Enquadro, São Paulo: RT, 2021, p. 150.
[7] BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça (Sexta Turma). Acórdão do RHC 158.580/BA. Relator ministro Rogério Schietti Cruz, jul. 19/04/2022, pub. 25/04/2022, Brasília: STJ, 2022. Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em: 10 maio 2025.
[8] CARDOSO, Marcos Lopes; COTA, Maria do Carmo. A fundada suspeita: ações policiais envolvendo a busca pessoal. Revista Humanas e Inovação, Palmas, v.10, n.07, p. 4, abr.2023. Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/9037. Acesso em: 28 abr. 2025.
[9] Iden [7].
[10] Iden [1].
[11] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1961459, São Paulo. Relatora: Ministra Laurita Vaz.Órgão Julgador: Sexta Turma. Julgado em 5 de abril de 2022. Publicado no DJe em 8 de abril de 2022, n.p. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%27202100440170%27.REG. Acesso em: 30 abr. 2025.
[12] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6 Turma). AgRg no HC 734.263/RS. Agravo Regimental no Habeas Corpus. Tráfico de drogas. Ilegalidade flagrante preliminar ao mérito aferível de ofício. Provas ilícitas. Busca pessoal e veicular. Denúncia anônima. Ausência de elementos concretos. Fundada suspeita inexistente. Nulidade. Absolvição. Extensão ao corréu (art. 580 do CPP). Relator: Min. Sebastião Reis Júnior, 14 de junho de 2022. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28%28AGRHC.clas.+ou+%22Ag Rg+no+HC%22.clap.%29+e+%40num%3D%22734263%22%29+ou+%28%28AGRHC+ou + %22AgRg+no+HC%22%29+adj+%22734263%22%29.suce. Acesso: 10 mai. 2025.
[13] Iden [7].
Karoline Oliveira Marques: Graduanda em Direito pela PUC Minas. Estagiária do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Membro do Projeto de Extensão vinculado ao Grupo de Pesquisa em Teoria Geral do Delito (G.TeD) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Grupo de Estudos Étnico-Raciais Esperança Garcia do TJGO. Membro da Comissão de Pesquisa da Comissão Jovem do Instituto de Ciências Penais (ICP). Associada do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).