Do mesmo modo que os sismógrafos identificam a magnitude dos abalos geológicos, antevendo tragédias, a forma de operacionalização do processo penal por determinado Estado pode revelar sua tendência em flertar com o indesejável arbítrio[1].
Essa metáfora, que encabeça o raciocínio a ser aqui desenvolvido, foi pensada por Claus Roxin como um alerta para que uma sociedade que se pretende democrática não caminhe em direção a um patíbulo. A advertência do saudoso mestre alemão é imprescindível, porque muito mais do que um calabouço úmido e fétido, a queda nesse caso representa a subjugação da vontade social (representada pelo estrito cumprimento da lei[2]) e o completo sacrifício dos direitos e das garantias fundamentais do cidadão.
A Constituição da República de 1988 optou nitidamente pela instituição de um Estado Democrático de Direito e, por conseguinte, adotou um modelo garantista de processo penal[3]. O texto constitucional erigiu um conjunto de limites ao poder punitivo estatal, o que revela sua preocupação em contê-lo e alcançar sua mais legítima aplicação. O intérprete, portanto, deve se balizar pelos referidos limites tendo em vista a primazia e a efetividade máxima das garantias fundamentais inerentes ao devido processo penal.
Em que pese a eficácia limitadora dos referidos direitos, a Suprema Corte do país tem desmantelado a presunção de inocência. No final de 2024, o STF firmou entendimento de que “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada” (RE n.º 1.235.340 — Tema 1.068 de Repercussão Geral)[4].
O julgamento do leading case buscava sanar as seguintes “controvérsias”: (I) se seria possível a imediata execução tendo em vista a soberania dos veredictos; e (II) se o limite de pena disposto no art. 492, I, “e”, do CPP seria constitucional.
Por maioria, prevaleceu o voto do Relator, o Min. Luís Roberto Barroso, responsável por delinear a ratio decidendi do acórdão, o que, todavia, fez a partir de argumentos meramente pragmáticos.
O argumento derradeiro foi o de que a decisão dos jurados, especialmente no tocante à autoria e materialidade do delito, não poderia ser reexaminada pelo tribunal togado em razão da soberania dos vereditos, de modo que a presunção de inocência assumia uma intensidade de menor peso nos julgamentos promovidos pelo Júri. Do contrário, a liberdade ao condenado afetaria credibilidade do Judiciário e violaria sentimentos mínimos de justiça.
Destacam-se ainda do voto condutor as afirmações de que o direito penal deveria tutelar a vida humana de forma mais reforçada, diante dos alarmantes números de homicídios praticados no país. E, como raramente um veredito é cassado, a espera indefinida pelo trânsito em julgado poderia levar à impunidade (por exemplo, com a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva).
De antemão, é preciso pontuar que a impossibilidade de revisão da decisão dos jurados não é absoluta, sendo esta reformável em caso de nulidade ou quando manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, "a" e "d", do CPP[5]). Inclusive, a segunda hipótese demanda revolvimento fático-probatório para identificar se a versão acolhida pelos jurados possui um substrato mínimo no conjunto probatório. Logo, é possível que um tribunal casse a decisão e determine a realização de um novo julgamento pelo povo, ocasião em que o resultado do julgado pode ser modificado.
A baixa recorrência no provimento de recursos não pode servir de fundamento para relativizar a presunção de inocência. O núcleo central desta garantia, historicamente, é de que “é melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente”[6]. Ora, se o reexame do veredito é possível, é injustificável equiparar a exceção à regra.
O respeito às garantias fundamentais, por sua vez, não caminha em direção oposta à credibilidade do Judiciário. Isso porque a vontade popular (à qual o STF costuma se referir para legitimar suas decisões) não reside na condenação, mas na observância da lei[7], a qual é plenamente satisfeita quando o tratamento do indivíduo como culpado lhe é dispendido apenas com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
A lei não faz juízos de valor em face do resultado do julgamento, sendo que a absolvição e a condenação são possibilidades normativas igualmente neutras em termos axiológicos. Em realidade, a hierarquia valorativa que se faz entre ambas hipóteses é fruto da ideologia, da moral e da demagogia, as quais não devem contaminar a decisão judicial.
É um equívoco (senão uma falácia) afirmar que a solução para alcançar maior tutela da vida humana seja a prisão dos que são presumidamente inocentes. Olvidou-se a Suprema Corte de que a proteção de bens jurídicos se realiza em etapa anterior ao processo penal[8], o qual, independentemente do seu resultado, não reestabelece a vida ceifada ou colocada sob risco.
A construção mais contemporânea do processo penal tem cada vez mais se distanciado da lógica privatista que sempre permeou a matéria. Não é admissível o entendimento de que a vítima possui um interesse no processo penal contraposto à liberdade do indivíduo, como se parte fosse, sob pena de caracterizar a condenação como direito subjetivo de um particular, à míngua dos direitos e garantias fundamentais.
O direito à liberdade é colocado sob iminente risco quando a presunção de inocência é relativizada. Ao contrário do que transparece o julgado em questão, a liberdade de um indivíduo não compreende uma fissura na integridade do sistema jurídico. A verdadeira fissura reside na redução do conteúdo de uma garantia fundamental do cidadão com a justificativa de se combater o fantasma de um “mal maior”, narrativa esta própria de sociedades que caminham (muitas vezes a curtos passo) em direção ao patíbulo do autoritarismo. Somente compreendendo o processo penal como meio de tutela do indivíduo e efetivação da democracia[9] é que o intérprete estará alinhado com as diretrizes e os limites constitucionais.
[1] ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003, p. 10.
[2] PINTO, Felipe Martins; BRENER, Paula. A eficácia do contraditório no processo penal: atuação e legitimação para além da legalidade. Revista CNJ, Brasília, v. 3, n. 1, p. 40, jan./jun. 2019.
[3] PINHO, Ana Cláudia Bastos de; SALES, José Edvaldo Pereira. Processo Penal autoritário versus Processo Penal garantista: dois antípodas, uma escolha. In: MADEIRA, Guilherme; BADARÓ, Gustavo; SCHIETTI CRUZ, Rogério (Coord.). Código de Processo Penal: estudos comemorativos aos 80 anos de vigência. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, livro eletrônico.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 1235340 (Repercussão Geral), Relator(a): MIN. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, Brasília/DF, julgado em 24-10-2019, DJe 04-08-2023. Disponível em: < https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/repercussao-geral13146/false>
[5] BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Decreto-lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, RJ. 13 de outubro de 1941. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>
[6] LAUDAN, Larry. Truth, Error and Criminal Law. An Essay in Legal Epistemology. New York: Cambridge University Press, 2006, p. 63. In: ANDRADE, Flávio da Silva. Standards de prova no processo penal: os critérios de suficiência probatória, sua sistematização e a aplicabilidade do proof beyond a reasonable doubt no Brasil. 2021. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. 2021.
[7] PINTO, Felipe Martins; BRENER, Paula. A legitimação pelo contraditório no processo penal: para além de um silogismo dialético. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 162, ano 27, p. 182, dez. 2019.
[8] MOREIRA, Rômulo. Curso Temático de Direito Processual Penal. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 312.
[9] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
Eduardo Nunes Carvalho: Associado do ICP Jovem. Assistente de Gabinete no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Graduando na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.