28/04/2023

O problema da indemarcação teórica do bem jurídico-criminal como recurso retórico de criminalização: brevíssimos apontamentos a partir dos crimes de perigo abstrato e sob o escopo da criminologia

Lucas Glufke Chaves

A análise dos pressupostos de criminalização a partir dos delitos legalmente configurados como “de perigo abstrato” esbarra, quase instantaneamente, no problema alusivo ao princípio da ofensividade ao bem jurídico-criminal.
Esta primeira impressão, todavia, é também um obstáculo epistemológico. Há quase duas décadas, Greco alertou para a miríade de problemas constatáveis a partir daquela análise – a conclusão apressada pela inconstitucionalidade (por ofensa à lesividade) seria, assim, o sintoma de outro óbice ao conhecimento científico. 
Interessam-nos os problemas decorrentes do conceito de bem jurídico-criminal. É que, se não há conhecimento sem problema, entendemos que o conceito de bem jurídico apresentado pela dogmática jurídica é insuficiente para se aferir a (in) constitucionalidade de normas jurídico-criminais e do próprio processo de criminalização. 
Em primeiro lugar porque as mais difundidas teorias do bem jurídico são de matriz constitucionalista, de modo que a CF/88 é o suposto referencial teórico de todos os bens jurídicos. O que se deve questionar é se tal matriz permite a superação das sequelas míticas do poder constituinte originário, e a nós nos parece que a resposta é negativa. É que estes juristas, porque percebem os bens jurídicos como “valores substanciais, concretizados histórico-positivamente”, justificam que toda lesão a um destes valores ampara a intervenção criminalizante, ainda que a ofensa seja pressuposta.
Aliás, e em segundo lugar, a ausência de uma demarcação objetiva do bem jurídico possibilita que este conceito sirva como um tópico retórico, cuja variação de sentido, ao arrepio de um discurso criminal não-legitimador do poder punitivo, permite justamente a expansão do seu horizonte de projeção. A expansão desarrazoada do direito criminal está diretamente ligada a “novas” valorações de interesses “antigos” : se o bem jurídico é a resultante da existência de um conceito abstrato e da valoração deste conceito pelo seu titular, daí se pode depreender outro problema, de interesse, a nosso ver, criminológico: quem é o “povo” que legitima a criação de novos crimes e por que lhe interessa a expansão do direito criminal?
Ora, diante da impossibilidade de escolhas terminológicas neutras, é notável que o legislador tenha optado pelo sintagma “perigo abstrato” para se referir àquela classe delitiva, já que a política criminal brasileira parece aderir ao estado de emergência permanente, voltado à privação de liberdade (em sentido amplo) dos indivíduos não-integrantes das diretrizes daquela mesma política criminal e, portanto, previamente etiquetados como desviantes.
Discordamos, por fim, que a “descoberta (ou revelação) do núcleo essencial do conceito de bem jurídico” esteja entre “um dos grandes problemas da ciência penal”, por entendermos que o bem jurídico não encerra, em si mesmo, a problematização acerca de sua própria valoração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Lucas Glufke Chaves: Bacharel em Direito pela PUC Minas Praça da Liberdade. Especialista em Ciências Penais pelo Instituto de Educação Continuada. Pós-Graduando em Escrita Criativa pelo Instituto de Educação Continuada. Aluno da disciplina isolada Teoria do Direito, Direito e Contemporaneidade Científica, ministrada junto ao Programa de Pós-Graduação da PUC Minas. Assessor Judiciário na 9ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

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