Tales Bernal Bornia
No pós-abolição e durante as primeiras décadas do séc. XX, o samba foi um dos alvos de perseguição Estado brasileiro, que reprimia e criminalizava expressões culturais e modos de sobrevivência daquela grande população de ex-escravizados, criadores desse ritmo que floresceu no Rio de Janeiro nos terreiros e festas nas casas das “tias baianas” (sacerdotisas do candomblé que migraram da Bahia para o Rio devido a perseguições religiosas).
O art. 399 do Código Penal de 1890[i] tipificava o delito de vadiagem[ii], um tipo penal aberto utilizado pela polícia para punir os sambistas, sendo que o simples fato de andar na rua com um instrumento musical poderia ser visto como um indício de sua prática.
Dentre as tantas histórias[iii], a que melhor exemplifica tal perseguição envolve João Machado Guedes, o João da Baiana, um dos pioneiros do samba. Conforme narra Lira Neto[iv], certa vez, em 1908, a caminho de Festa de Nossa Senhora da Penha, João foi abordado pela polícia, sob suspeita de vadiagem. Por comprovar que possuía emprego, não foi levado para a delegacia, mas teve seu pandeiro de “estimação” apreendido.
Triste por conta do acontecido, não acompanhou os amigos alguns dias depois em uma festa na mansão do poderoso Senador Pinheiro Machado, que ao saber do motivo da ausência de João, mandou avisá-lo para que o fosse até seu gabinete no Solar do Conde dos Arcos, então sede do Senado Federal. Recebendo João no gabinete, o Senador disse a ele que lhe presentearia com um novo pandeiro, rabiscando então um bilhete para que João entregasse no balcão da loja, ordenando ao vendedor que desse a ele o melhor pandeiro e que escrevesse no instrumento a frase: “A minha admiração, João da Baiana - Senador Pinheiro Machado”[v].
Daí em diante, nenhum policial nunca mais ousou confiscar o pandeiro de João da Baiana. A inscrição nele servia como verdadeiro salvo-conduto, um “habeas corpus preventivo”, mas também como uma verdadeira prova da complexidade das relações sociais entre as elites da cidade e os músicos do subúrbio, perseguidos pela polícia mas adorados por muitos poderosos.
Como disse Lira Neto: “O samba agoniza, mas não morre. Reinventa-se, orbitando entre os signos ancestrais da festa e da agonia. Tributário da grande diáspora africana, soube sobreviver à gramática do chicote e da senzala. Nascido no saracoteio dos batuques rurais, adentrou a periferia dos grandes centros urbanos sem pedir licença. Iniciado nos terreiros de macumba, incorporou-se aos cortejos dos ranchos, blocos e cordões, numa simbiose perfeita com o Carnaval. Enfrentou preconceitos, ouviu desacatos, padeceu segregações. Ganhou espaço no picadeiro dos circos mambembes e foi adotado pelos tablados do teatro ligeiro. Sinônimo de malandragem, viu-se perseguido pela polícia, entregou-se à vadiagem das ruas, perambulou pelos cabarés mais ordinários da zona do Mangue. No morro, foi morar nas ribanceiras das favelas, sem nunca abdicar dos apelos do asfalto. Vendido e comprado na surdina, tratado como produto clandestino, aos poucos foi sendo envolvido pelos códigos e engrenagens do grande mercado. Ladino, chegou ao disco, ganhou o rádio, virou astro de cinema”[vi].
[i] BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Codigo Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htmimpressao.htm. Acesso em: 15 fev. 2023.
[ii] Art. 399. Deixar de exercitar profissão, oficio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicilio certo em que habite; prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes.
[iii] Por exemplo, na edição de 14 de abril de 1903 do Jornal do Brasil foi publicada a seguinte notícia: “O delegado da 15ª circunscrição urbana, acompanhado de inspectores e praças, deu cerco ontem à noite, em uma chácara abandonada da rua Barão do Bom retiro nº 57, de propriedade de Horacio Caldas, onde se realizava um funambulesco samba, prendendo mais de 100 indivíduos, que se entretinham na dança africana. A chácara chama-se Cabuçu e de ordinário ali se realizam tais reuniões e festanças. Todo esse pessoal o delegado conduziu, em um verdadeiro préstito, para a sede da delegacia, onde, verificando que não havia xadrez para todos, mandou os em paz, recomendando a Horácio que acabasse de vez com os sambas”. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_02&pagfis=6651. Acesso em: 16 mar. 2023.
[iv] LIRA NETO. Uma História do Samba: as origens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
[v] LIRA NETO. Uma História do Samba: as origens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
[vi] LIRA NETO. Uma História do Samba: as origens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Tales Bernal Bornia: Advogado. Graduado em Direito pelo CEUB/ITE. Diretor de Simulações do ICP Jovem. Coordenador Adjunto da edição de São Paulo do Laboratório de Ciências Criminais do IBCCRIM. Pesquisador no Projeto "Direitos Humanos e Condições de Encarceramento" do Grupo de Pesquisa "Direito Penal e Estado Democrático de Direito" da FD-USP. Pós-graduando.