Jéssica Carolina Celestino Ferreira
É fato e não é novidade que o reconhecimento de pessoas é uma das causas (senão a maior) de erros e injustiças em um processo penal. Em que pese o artigo 226 do Código de Processo Penal Brasileiro especificar detalhadamente como deve ser feito o referido procedimento, tem-se que, na prática, as palavras do legislador revelam um mundo ideal quase que utópico, havendo uma resistência muito grande, principalmente das polícias, para o cumprimento do mandamento legal.
A questão é ainda mais complexa considerando que existem pessoas com características semelhantes e que, no momento da adrenalina, é comum vítimas e testemunhas não conseguirem assimilar os detalhes dos traços dos autores do crime.
Diante deste cenário de condenações injustas de inocentes e impunidade dos verdadeiros culpados, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução 484 de 2022, resultado do grupo de trabalho (GT) instaurado pela Portaria CNJ nº 209/2021, cuja equipe foi liderada pelo Ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça.
A referida Resolução estabeleceu algumas diretrizes extras para a realização do reconhecimento de pessoas nos processos criminais e representa um avanço significativo e um empenho do próprio Poder Judiciário em buscar minimizar o número de erros. Observa-se que nos “considerandos” da referida norma, há referência importante ao racismo estrutural, com um dado assustador de que 83% dos reconhecimentos equivocados são de pessoas negras.
Algumas das diretrizes implementadas pelo CNJ sobre a temática se destacam, motivo pelo qual merecem ser mencionadas neste artigo. A primeira delas diz respeito à constituição de um defensor para acompanhar o procedimento de reconhecimento, o que garante a legalidade do ato e evita abusos por parte dos agentes estatais. Dentro da mesma linha de raciocínio de prevenção a arbitrariedades, a Resolução 484 dispõe que todo o procedimento será gravado, com a disponibilização dos vídeos para as partes, caso solicitado. Isso evidentemente traz mais segurança aos envolvidos e lisura ao procedimento.
Há, também, o cuidado do CNJ no tocante à vedação da indução de vítimas e testemunhas para atribuir autoria a uma determinada pessoa. Desta feita, a referida Resolução veda expressamente o uso de perguntas que possam induzir ou sugerir determinada resposta, bem como estabelece a necessidade de perguntar a pessoa que está reconhecendo outra se ela recebeu alguma imagem ou informação de alguém ou de algum policial sobre as características daquela que se pretende reconhecer. Ademais, a norma estabelece que a vítima ou testemunha deve ser cientificada de que a pessoa investigada pode ou não estar entre aquelas que lhe são apresentadas.
De fato, observa-se um esforço significativo do Poder Judiciário para diminuir o número assustador de prisões e condenações injustas decorrentes de um reconhecimento errado, o que traz um certo conforto e a perspectiva de melhora. Contudo, ainda há muito o que progredir na prática e há muito o que evoluir na conscientização sobre a necessidade da exequibilidade dos procedimentos previstos em lei, os quais não revelam uma mera formalidade e burocracia, e sim uma legítima prevenção ao massacre de direitos fundamentais, notadamente das minorias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
WEBER, Rosa. O Judiciário e o reconhecimento de pessoas. CNJ, artigo publicado originalmente no Jornal O Estado de São Paulo, 08 de dezembro de 2022. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/o-judiciario-e-o-reconhecimento-de-pessoas/>. Acesso em: 15 de fevereiro de 2023 às 21h03min.
MELO, Jeferson. Resolução do CNJ busca superar falhas no reconhecimento de pessoas. Conselho Nacional de Justiça, Brasília, 06 de dezembro de 2022. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/resolucao-do-cnj-busca-superar-falhas-no-reconhecimento-de-pessoas/ >. Acesso em: 15 de fevereiro de 2023 às 21h06min.
SCHIETTI, Rogério (coordenador). Grupo de Trabalho Reconhecimento de Pessoas. Conselho Nacional de Justiça, Brasília, setembro de 2022. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/12/relatorio-final-gt-sobre-o-reconhecimento-de-pessoas-conselho-nacional-de-jusica.pdf> . Acesso em: 15 de fevereiro de 2023 às 21h08min
RECONHECIMENTO de pessoas: um campo fértil para o erro judicial. Superior Tribunal de Justiça, Brasília, 06 de fevereiro de 2022. Disponível em:
BRASIL, RESOLUÇÃO 484 de 19 de dezembro de 2022, Conselho Nacional de Justiça, Brasília. Disponível em:
Jéssica Carolina Celestino Ferreira: advogada criminalista, graduada em Direito Integral pela Escola Superior Dom Helder Câmara e pós-graduada em Direito Público pela Escola Superior de Advocacia.