19/01/2023

A estruturação de programas de compliance e o impacto na delimitação do dolo delitivo

Samuel Justino de Moraes

Em meio ao contexto de inflação penal legislativa, aumentou-se a importância da adoção de programas de controle dos riscos inerentes à atividade empresarial[i], os quais, para além de configurarem estratégia de governança corporativa, provocam impactos na calibragem do elemento subjetivo do tipo nos delitos empresariais.

Com efeito, na maioria dos crimes cometidos no contexto de empresa, não existe um comportamento típico imediato por parte dos gestores ou, ainda, é difícil prová-lo[ii]. Contudo, como os dirigentes são tomados como garantidores da atividade empresarial[iii], admite-se a punição no caso de omissão na evitação de crimes decorrentes de comportamentos de subordinados ou da manipulação de coisas perigosas custodiadas pelo empreendimento[iv]. Para a dosagem da tipicidade subjetiva, esse fenômeno pode ser desafiador, pois, além da tendência prática de relativização dos elementos subjetivos do tipo, há um amplo espaço de manobra para o gestor se manter distante do foco que deveria vigiar.

Em razão da limitação de espaço, importa a análise do impacto da estruturação de programas de conformidade na calibragem do dolo.

Apesar das controvérsias[v], é possível assumir que o dolo é afirmado por um terceiro, considerando elementos marcantes no comportamento que permitam inferir que o agente, ao menos, representou o perigo qualificado da realização de um tipo penal[vi], exigindo-se, conforme entendimento majoritário, a atribuição do elemento volitivo, qual seja, a “assunção aprovadora do resultado”[vii]. Desse modo, contrario sensu, o dolo é afastado quando um dirigente de empresa não contou com a possibilidade de que crimes fossem cometidos por seus subordinados ou, mesmo reconhecendo-a, confiou seriamente que isso não chegaria a acontecer[viii]. Neste caso, ter-se-ia uma omissão abarcada pela culpa consciente, a qual poderia estar presente nos casos em que a organização houver estruturado um adequado programa de integridade.

Nesse sentido, a partir da análise dos indicadores, a determinação processual do dolo, no plano da criminalidade corporativa, é impactada com a verificação da efetiva estruturação de programas de compliance, pois denota, como marca dominante da conduta, o emprego de medidas de evitação com as providências organizacionais estruturadas para monitoração dos riscos e impedimento de crimes, as quais são suficientes para fundamentar um indício contrário à existência do dolo. Com isso, torna-se crível a conclusão de que o dirigente, com a delegação dos deveres de evitação e o emprego de esforços para impedir as infrações, não mais reconhecia a possibilidade qualificada de realização de condutas perigosas ou não confiava seriamente em sua ocorrência.

Entretanto, como os contextos nos crimes econômicos são complexos, a análise da estruturação de sistemas de conformidade para evitar a prática de crimes na empresa, em que pese constitua indício para o afastamento do dolo, deve ser sopesada com os demais elementos fáticos e globais para se dosar adequadamente a tipicidade subjetiva, inclusive no que toca aos próprios contornos dos poderes conferidos ao responsável pelo programa[ix] e à sua eficácia ou instituição meramente pro forma.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 1641743/PE, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em. 02/03/2021, DJe 08/03/2021.

ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. ed. – São Paulo: Marcial Pons, 2017.

PEREIRA, Henrique Viana; MAYRINK, Renata Pereira. Criminal compliance como medida de governança corporativa e seu papel na delimitação de responsabilidades penais. Revista de Direito Administrativo, v. 279, p. 217-244, 2020.

RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Dolo sem conhecimento? Reflexões sobre a condenação de Lionel Messi por sonegação fiscal. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 7, n. 2, p. 265-284, 2022.

RÖNNAU, Thomas; BECKER, Christian. Evitação do dolo por dirigentes de empresas nos delitos relacionados à atividade empresarial. Trad. Marcelo Costenaro Cavali. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 24-45, 2022.

VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[i] PEREIRA, Henrique Viana; MAYRINK, Renata Pereira. Criminal compliance como medida de governança corporativa e seu papel na delimitação de responsabilidades penais. Revista de Direito Administrativo, v. 279, p. 217-244, 2020.

[ii] RÖNNAU, Thomas; BECKER, Christian. Evitação do dolo por dirigentes de empresas nos delitos relacionados à atividade empresarial. Trad. Marcelo Costenaro Cavali. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 24-45, 2022.

[iii] Nesse sentido, em julgado recente, o Superior Tribunal de Justiça, no bojo do AgRg AREsp 1641743/PE, considerou que os sócios administradores, mesmo não relacionados ao setor no qual ocorrera um delito tributário, seriam autores do crime, pois possuiriam o dever de evitar o resultado.

[iv] Para uma visão completa, cf.: ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. ed. – São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[v] Atualmente, não há nem mesmo unanimidade acerca da exigência do elemento cognitivo do dolo. Por todos, cf.: RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Dolo sem conhecimento? Reflexões sobre a condenação de Lionel Messi por sonegação fiscal. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 7, n. 2, p. 265-284, 2022.

[vi] No Brasil, este é um conceito próximo do defendido por Eduardo Viana, embora o autor ancore o dolo em um referencial exclusivamente cognitivo. Para tanto, cf.: VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[vii] O termo é impreciso, havendo múltiplas teorias com diferentes conceituações para o elemento volitivo do dolo eventual, a exemplo das teorias da “indiferença”, do “consentimento” e da “decisão pela possível lesão ao bem jurídico”. O Código Penal Brasileiro utiliza, em seu artigo 18, a expressão “assumiu o risco” de produzir o resultado.

[viii] RÖNNAU, Thomas; BECKER, Christian. Evitação..., p. 5.

[ix] Heloisa Estellita sustenta que a resposta para a pergunta de se o compliance officer é garante depende da análise do concreto feixe de deveres e competências delegados, vez que é preciso haver controle sobre a empresa. Cf.: ESTELLITA, Responsabilidade..., p. 209 ss.

Samuel Justino de Moraes: Advogado Criminalista. Bacharel em Direito pela PUC Minas.

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