Lucas Felipe de Araújo Santos
A Constituição Federal de 1988 sistematizou de forma mais organizada o princípio da presunção de inocência, no qual o réu não somente deve ser considerado inocente até o trânsito em julgado da decisão condenatória, mas também deve ser tratado como tal durante toda a persecução criminal (inclusive na investigação). Essa mudança de paradigma trazida pela CF/88 também reflete no caráter excepcional que a prisão deve ter, devendo ser enxergada como de ultima ratio.
A Lei nº 7.960, que dispõe sobre a Prisão Temporária, foi promulgada em 1989, um ano após a promulgação da Constituição Cidadã. Vale lembrar que sua origem se deu pela Medida Provisória de número 111/1989, editada com o fim de atender os anseios da classe policial que se viu esvaziada com a chegada da nova Constituição, perdendo alguns importantes poderes e, dentre eles, a extinção da prisão para averiguação do ordenamento jurídico. Alguns doutrinadores apontam que houve a violação do art. 22, I da CF/88, tendo em vista que o assunto “prisão” não deve ser tema de Medida Provisória e sua conversão em lei não é capaz de suprir o vício de iniciativa e a flagrante inconstitucionalidade formal[1].
Parte da doutrina também leciona que a Lei nº 7.960/89 deu uma nova roupagem para a prisão para averiguação, tendo em vista que seus arts. 1º e 2º dizem que basta ser a prisão imprescindível para as investigações, ou que o indiciado não tenha residência fixa, que ela poderia ser requerida e decretada. Aury Lopes Jr (2021) vai além, pontuando que a prisão temporária “se trata de uma prisão cautelar para satisfazer o interesse da polícia, pois, sob o manto da imprescindibilidade para as investigações do inquérito, o que se faz é permitir que a polícia disponha, como bem entender, do imputado”.[2]
Esses argumentos foram alguns dos principais utilizados na ADI 3.360[3] e na ADI 4.109[4], ajuizadas em 2004 e 2008, respectivamente, com o fim de declarar a inconstitucionalidade da Lei. Vale colacionar o que o autor da ADI 4.109 diz sobre o tema: “a prisão temporária, conhecida como prisão para averiguações, foi rejeitada pelo governo dos militares, por haver sido considerada flagrantemente antidemocrática e que a redação imprecisa da lei provoca controvérsias no meio jurídico e, além de agredir a garantia do devido processo legal, ultrapassa a razoabilidade dos objetivos que busca”[5].
A relatora Min. Cármen Lúcia proferiu o voto pela constitucionalidade, mas o voto que prevaleceu foi do Min. Edson Fachin, dando parcial provimento às ações, sendo acompanhado pela maioria para dar interpretação conforme à Constituição ao art. 1º da Lei, atribuindo os seguintes critérios para decretação da prisão temporária:
1) for imprescindível para as investigações do inquérito policial (art. 1º, I, Lei 7.960/1989) (periculum libertatis), constatada a partir de elementos concretos, e não meras conjecturas, vedada a sua utilização como prisão para averiguações, em violação ao direito à não autoincriminação, ou quando fundada no mero fato de o representado não possuir residência fixa (inciso II);
2) houver fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes previstos no art. 1º, III, Lei 7.960/1989 (fumus comissi delicti), vedada a analogia ou a interpretação extensiva do rol previsto no dispositivo;
3) for justificada em fatos novos ou contemporâneos que fundamentem a medida (art. 312, § 2º, CPP);
4) a medida for adequada à gravidade concreta do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do indiciado (art. 282, II, CPP);
5) não for suficiente a imposição de medidas cautelares diversas, previstas nos arts. 319 e 320 do CPP (art. 282, § 6º, CPP).
Em síntese, o Supremo coloca expressa a característica cautelar da prisão temporária, de forma que ela só é constitucional quando entendida como prisão cautelar e estando presentes o fumus comissi delicti e periculum libertatis, bem como respeitando-se os princípios da proporcionalidade e da contemporaneidade. Também afasta a alegação que a expressão "será decretada", contida no caput do art. 2º da Lei, resultaria no possível entendimento que o juiz é obrigado a decretar a prisão quando houver requerimento da autoridade policial ou do MP. Afasta-se também a interpretação que se exigia a observância do art. 313 do CPP para a decretação da prisão temporária, tendo em vista que esse dispositivo trata especificamente sobre a prisão preventiva, e a temporária tem uma lei específica para tratar seus próprios delitos passíveis de decretação.
Concluindo, concordo com os requisitos apresentados pelo STF no julgamento da ADI 3.360 e da ADI 4.109, que visam dar fim a ampla discussão que havia na doutrina sobre a necessidade de cumulação ou não dos incisos I, II e III do art. 1º da Lei 7.960/89. A observância dos princípios gerais das cautelares é algo que a melhor doutrina processual penal já vinha dizendo há um bom tempo. Espera-se que tais requisitos sejam integralmente observados pelos tribunais e juízes visando extinguir a banalização da prisão temporária, comumente utilizada como instrumento de coerção do investigado, do mesmo modo que a finada prisão para averiguação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Criminal Player - Ep. 003 Prisão Temporária e a Decisão do STF. [Locução de]: Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa., 22 fev. 2022. Podcast. Disponível em:
JR., Aury Lopes. Direito Processual Penal. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. 1232 p.
JR., Aury Lopes. Prisões Cautelares. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2021. 240 p.
MOREIRA, Rômulo de Andrade. O Supremo e os critérios para a decretação da prisão temporária. Revista Consultor Jurídico, 21 fev. 2022. Disponível em:
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 25ª. ed. São Paulo: Gen Atlas, 2021. 853 p.
Criminal Player - Ep. 003 Prisão Temporária e a Decisão do STF. [Locução de]: Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa., 22 fev. 2022. Podcast. Disponível em:
[1] JR., Aury Lopes. Direito Processual Penal. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. 1232 p.
[2] JR., Aury Lopes. Direito Processual Penal. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. 1232 p.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3.360 – Distrito Federal. Relator: Ministra Cármen Lúcia, julgado em 11 fev. 2022. [Decisão encartada no Informativo nº. 1043 do Supremo Tribunal Federal]
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.109 – Distrito Federal. Relator: Ministra Cármen Lúcia, julgado em 11 fev. 2022. [Decisão encartada no Informativo nº. 1043 do Supremo Tribunal Federal]
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.109 – Distrito Federal. Relator: Ministra Cármen Lúcia, julgado em 11 fev. 2022. [Decisão encartada no Informativo nº. 1043 do Supremo Tribunal Federal]
Lucas Felipe de Araújo Santos: Especialista em Ciências Penais pelo IEC – PUC/Minas. Graduado em Direito. Membro regular do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado corporativo na área criminal e no combate e prevenção à fraude.