16/12/2021

A obsolescência da inafiançabilidade

Pedro Henrique Mourão de Souza

Tornou corriqueiro os veículos de mídia anunciarem incidentes criminais dando ênfase à questão de inafiançabilidade do delito. Interessante que é veiculado em tom pesaroso, dando a impressão da gravidade da situação e do peso que a impossibilidade de fiança gera ao infrator. Confesso que por anos, era quase automático meu raciocínio de atrelar a inafiançabilidade como uma sanção privativa à condição de liberdade do acusado, o que se vem pôr em xeque na presente reflexão, apresentando a incongruência da ideia esculpida na Carta Magna Nacional.

Ab initio, necessário trazer o conceito de fiança que, segundo Capez “consiste na prestação de uma caução de natureza real destinada a garantir o cumprimento das obrigações processuais do réu ou indiciado”.

Sendo assim, desde já, frisa-se: fiança não é sinônimo de liberdade provisória, nem fundamento ou requisito para seu alcance. Porém, nem sempre foi assim, e é por isso que o instituto carrega relação íntima com a liberdade provisória.

O primeiro momento em que se tem conhecimento do instituto da fiança no Brasil vai de encontro ao primeiro momento em que nos deparamos com um instrumento constituinte, ainda nos tempos de Império, em 1824, e assim dispunha:

Art. 179, IX. Ainda com culpa formada, ninguém será conduzido á prisão, ou nella conservado estando já preso, se prestar fiança idônea, nos casos, que a lei a admite: e em geral nos crimes, que não tiverem maior pena, do que a de seis mezes de prisão, ou desterro para fora da Comarca, poderá o Réo livrar-se solto. (CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL 1824. BRASIL, 1824).” [1]

Veja que o status de liberdade do cidadão era conservado caso esse prestasse fiança, em casos que a lei admitisse. Tal raciocínio seguiu com a primeira constituição promulgada no país, em 1891, que trouxe o clássico conceito dos crimes inafiançáveis.

A premissa era que a condição de restauração de liberdade em situação de flagrante ou prisão sem pena era vinculada ao pagamento de fiança. Por isso, a ideia de inafiançabilidade encontrava azo, vez que em delitos tidos com mais gravosos tal situação não era possível, e o acautelamento deveria ser mantido.

Porém, com a Lei nº 6.416/77 surgiram mudanças no instituto da liberdade provisória e da própria prisão processual que passou a não depender mais da fiança para ser considerada, e sim dos fundamentos e requisitos ensejadores do encarceramento provisório, postos nos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal.

Posto isso, hoje sabe-se que a liberdade provisória de um acusado está vinculada a existência de fundamentos e requisitos que devem estar cominados para a prisão sem pena. Se ausentes, não há que se falar em antecipação de prisão.

Ou seja, não é o pagamento de fiança que conduz a uma condição de liberdade provisória e sim a não existência de fundamentos e requisitos ensejadores de cárcere. Porém, tal mudança acaba por gerar a seguinte incongruência, observada por Capez:

(...) a figura da liberdade provisória sem fiança (criada pela Lei nº 6416/77) torna mais vantajoso responder por um crime inafiançável, já que a liberdade provisória, quando cabível, jamais virá seguida da incômoda fiança(...) (CAPEZ, 2017, p.365)[2]

Pois bem, imaginemos uma situação de deflagração de delito, onde não estejam reunidos os fundamentos e requisitos ensejadores de cárcere preventivo. Tanto para um crime fiançável ou inafiançável o resultado deve ser o mesmo: a liberdade do investigado. Porém, em caso de crimes inafiançáveis essa liberdade independe de pagamento, enquanto no caso de crimes fiançáveis ela provavelmente será atrelada à fiança.

Veja-se que a lógica de recrudescimento frente a crimes mais gravosos com o status de inafiançabilidade foi esvaziada, visto que o resultado liberdade é o mesmo e agora sem o impacto pecuniário.

Não obstante, não se olvida que a Lei 12.403/2011 alterou o paradigma da fiança, a alçando ao status de medida cautelar diversa do cárcere, positivada no artigo 319 do CPP. Porém, a situação não muda no aspecto da inafiançabilidade, que apenas veda uma das opções de cautelaridade trazidas no Código, deixando em aberto tantas outras e fulminado o intento do legislador no mérito da impossibilidade de fiança.

Portanto, imperioso que exista uma reflexão frente ao papel do instituto, que mesmo com a reformulação da fiança adquirindo aspecto de medida cautelar, não recuperou sua função, sendo relegada a noticiários sensacionalistas que ainda a trazem como uma realidade do século passado.

[1] Brasil. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil (DE 25 DE MARÇO DE 1824). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm

 [2]CAPEZ. Fernando. Curso de processo penal. 24 ed. – São Paulo: Saraiva, 2017.

 

Pedro Henrique Mourão de Souza: Mestrando em Direito Penal (Linha de Intervenção Penal e Garantismo) pela PUC/Minas, Pós-Graduando (MBA) em Governança, Riscos e Compliance pelo CEDIN, Pós-graduado em Ciências Penais pelo IEC – PUC/Minas. Graduado em Direito pela PUC-Minas. Membro regular do Instituto de Ciências Penais (ICP). Atuação em consultoria e contencioso da área penal. Atuação em consultoria e implementação de Compliance.

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