16/11/2021

Medidas de segurança e suspensão dos direitos políticos: uma analogia inconveniente

Davi Arnaut Kraiser

O artigo 26, do Código Penal Brasileiro, estabelece que “será isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”[1].

Este instituto, que, ao ser lido juntamente com o contido no art. 27, do Código Penal, consagra o critério biopsicológico de aferição da imputabilidade, deixa claro que o agente acometido por sofrimento psíquico poderá não compreender inteiramente o caráter ilícito de sua conduta, e, em tal hipótese, será tido como inimputável, não estando sujeito à punição estatal.

A isenção de pena, todavia, não implica que os fatos praticados por tais indivíduos não serão responsabilizados por seus atos, de forma que o Estado, em vez de impor-lhes uma reprimenda por fatos típicos e ilícitos que porventura venham a praticar, determina que se sujeitem a medidas de segurança, que poderão ser de internação em hospital de custódia (art. 96, I, CP) ou de tratamento ambulatorial, a ser realizado em meio aberto (art. 96, II, CP). Tais sentenças, que reconhecem a inimputabilidade do agente e determinam que ele se submeta a tratamento, são denominadas sentenças absolutórias impróprias. Absolutórias, pois não condenam o sujeito a prática de crime, eis que ausente o requisito da culpabilidade, mas impróprias, pois lhe impõe uma medida sancionadora.[2]

Há, portanto, certa ambivalência no trato de tais indivíduos que, se por um lado não podem ser tidos como culpados, por outro são obrigados a se sujeitar a um tratamento imposto em sentença penal, como se verdadeira sanção fosse. Sobre o tema, Paulo Vasconcelos Jacobina, na célebre obra “Direito Penal da Loucura”, elucida que:

Se o acusado era, ao tempo da infração, penalmente irresponsável, há uma outra perplexidade: é que ele é irresponsável, mas o processo penal prossegue, visando a uma eventual medida de segurança. É irresponsável, mas continua a ser processado criminalmente, com a presença do curador a si designado pelo juiz. Poder-se-ia dizer que o processo prossegue para eventualmente estabelecer sua inocência ou absolver-lhe, aplicando medida de segurança, mas, ao absolver e aplicar uma medida de segurança, o juiz está aplicando o consequente – a sanção penal – após reconhecer que o antecedente – a culpa – não existe, de onde se pode concluir que a inimputabilidade penal não implica, na prática, irresponsabilidade penal. Há consequências no âmbito penal, do ato em tese infracional praticado pelo legalmente inimputável, ou ele não estaria sendo criminalmente processado.[3]

Jacobina pontua, ainda, que não há, até hoje, uma resposta clara e objetiva para a natureza das medidas de segurança, sobretudo se estas se configurariam como uma espécie de sanção penal, como entende Damásio de Jesus, ou uma medida polícia aplicável para possibilitar um tratamento ao sujeito, como interpreta Ferrari.[4]

Fato é que, se por um lado as diversas formas de penas são pormenorizadamente qualificadas e elaboradas ao longo de nosso ordenamento jurídico, pouco há, do ponto de vista normativo, acerca do cumprimento e dos institutos aplicáveis às medidas de segurança. É cabível falar-se em benefícios executórios, como o livramento condicional, para os que estão em cumprimento de medida de segurança? Pode-se aplicar o sursis, o suspro ou o ANPP aos inimputáveis? Questões como estas, que emergem ao longo de execuções de medidas de segurança, esbarram em inúmeras lacunas legislativas, sem uma resposta objetiva do ordenamento jurídico.

E entre as inúmeras incertezas e indagações que emergem neste contexto, vem se consolidando o entendimento de que a suspensão dos direitos políticos é imperativa ao se impor uma medida de segurança, em que pese a ausência de previsão legal para tanto.

Os direitos políticos, indissociáveis do pleno exercício da cidadania, assumem especial relevo na Carta Magna, que somente admite o seu afastamento em hipóteses de cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado (art. 15, I, CF), incapacidade civil absoluta (art. 15, II, CF), condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos (art. 15 III, CF), recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa (art. 15, IV, CF) ou improbidade administrativa (art. 15, V, CF).

Diante disso, conclui-se que a absolvição imprópria, que, como o nome já diz, não se qualifica como condenação criminal, não deveria implicar, necessariamente, na suspensão dos direitos políticos.

Poder-se-ia argumentar que o indivíduo acometido por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, deveria ser tido, além de penalmente inimputável, como incapaz do ponto de vista civil, eis que sua possibilidade de exprimir a sua vontade estaria reduzida, nos termos do art. 4º, III, do Código Civil.

E aqui, duas reflexões são necessárias.

Primeiramente, deve-se pontuar que a inimputabilidade penal e a incapacidade civil, ainda que possam decorrer dos mesmos fatos, são institutos distintos. Assim, eventual declaração de inimputabilidade de um agente no bojo de ação penal não o torna civilmente incapaz, o que somente ocorreria após procedimento específico, cujas especificidades estão descritas no art. 747 e seguintes, do Código de Processo Civil.

Ademais, ainda que a sentença absolutória imprópria efetivamente interditasse o sujeito, declarando-o incapaz para a prática dos atos civis, não passa despercebido que apenas a incapacidade civil absoluta é apta a obstar o pleno exercício dos direitos políticos (art. 15, II, CF). Desta forma e, tendo em vista que apenas os menores de 16 (dezesseis) anos são tidos como absolutamente incapazes (art. 3º, CC), nem mesmo a interdição poderá impedir que o sujeito exerça plenamente os seus direitos políticos.

Nada obstante, a suspensão dos direitos políticos vem sendo determinada em diversas sentenças absolutórias impróprias por todo o país, fato este que, quando raramente impugnado, vem a ser chancelado nas instâncias superiores. A título de exemplo, tem-se o decidido no bojo da apelação criminal de nº 1112492-2, que tramitou perante a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, oportunidade em que se decidiu que a sentença absolutória imprópria implica na suspensão dos direitos políticos do réu tido como inimputável, sob o fundamento de que “não obstante tratar-se de sentença absolutória, tal absolvição é imprópria, ou seja, ostenta natureza condenatória vez que impõe medida de segurança, atribuindo sanção penal.”[5]

Se a Constituição impõe que a suspensão dos direitos políticos apenas decorrerá de condenação, casos como o citado retratam, inegavelmente, aplicação da analogia legis, que, segundo Rogério Sanches Cunha, é caracterizada pela utilização de outra disposição normativa para integrar a lacuna existente no ordenamento jurídico[6].

 Ocorre que tal forma de analogia, ainda que utilizada com o fito de atingir o real sentido do preceito legal, jamais poderá ser utilizada para ampliar o alcance da norma penal, impondo sanções de maneira diversa da prevista pelo ordenamento jurídico.

Não por acaso, a analogia in mallam partem é amplamente rejeitada pela doutrina e jurisprudência, eis que decorre do princípio da reserva legal, tão basilar em nosso sistema normativo que se encontra insculpido no art. 1º do Código Penal, e prevê expressamente a impossibilidade da imposição de penas sem prévia cominação legal.

E ainda sim, embora o penalmente inimputável tenha preservada a sua capacidade civil, que somente poderá ser relativizada mediante procedimento próprio, a regra é que, havendo uma absolvição imprópria, impõe-se a suspensão dos direitos políticos, ao arrepio dos já mencionados princípios constitucionais.

Consolidou-se, assim, nos tribunais brasileiros, a ideia de que, pela via da analogia, aplica-se aos loucos apenas o que tem o condão de os prejudicar, ao passo que os institutos penais que poderiam favorecê-los são limitados ao extremo, sob o fundamento de que a pena e a medida de segurança têm naturezas distintas.

De fato, não se pode confundir as medidas de segurança, impostas como tratamento, das penas, impostas como punição. É preciso, portanto, maior rigor ao transpor para as medidas de segurança os institutos típicos das penas, eis que tal prática pode implicar na inadmissível imposição de sanções penais em desacordo com o previsto na legislação constitucional e infraconstitucional.

[1]      BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União: Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.

[2]     CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro: fundamentos e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 500.

[3]     JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito penal da loucura e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008. p. 124.

[4]     JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito penal da loucura e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008. p. 132.

[5]     BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (5ª Câmara Criminal). Apelação Criminal nº 1112492-2. Apelante: Alessandra de Mattos Vechiato. Apelado: Ministério Público do Estado do Paraná. Relator: Marcus Vinicius de Lacerda Costa. Curitiba, data do julgamento: 05/12/2013. DJ 1250, data da publicação: 18/12/2013.

[6]     Cunha, Rogério Sanches. Manual de direito penal. Parte Geral. 3ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 65.

Referências bibliográficas:

  • Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
  • Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União: Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
  • Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: Brasília, 11 jan. 2002.
  • Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (5ª Câmara Criminal). Apelação Criminal nº 1112492-2. Apelante: Alessandra de Mattos Vechiato. Apelado: Ministério Público do Estado do Paraná. Relator: Marcus Vinicius de Lacerda Costa. Curitiba, data do julgamento: 05/12/2013. DJ 1250, data da publicação: 18/12/2013.
  • CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro: fundamentos e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
  • CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal. Parte Geral. 3ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
  • JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito penal da loucura e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008.

Bacharel em direito pela PUC-MG e advogado licenciado pela OAB/MG. Atualmente atua como estagiário de pós-graduação junto ao PAI-PJ (Programa de Assistência Integral ao Paciente Judiciário), mantido pelo TJMG. É associado ao ICP e integra a diretoria de pesquisa do ICP-Jovem.

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