Pedro Lucas Campos Silva
De acordo com o CNJ, em 2018 tramitaram no Brasil 9,1 milhões de processos criminais[1],assim, é clara a necessidade do "desentulhamento" das varas criminais, sendo a justiça negocial uma das alternativas apresentadas para o sistema judiciário. Nessa conjuntura, percebe-se o expansionismo de instrumentos negociais em um contexto no qual o Estado, como responsável pela investigação, processo e julgamento, se vê incapaz à frente de suas atribuições.
No Anteprojeto do “Pacote Anticrime”[2] houve a tentativa de introduzir o instituto do plea bargaining presente nos Estados Unidos. Entretanto, adotou-se uma variação do instituto, o acordo de não persecução penal, porém, com uma aplicabilidade reduzida.
O sistema processual penal norte americano, produto da common law, expressa o denominado sistema adversarial, caracterizando-se pela predominância das partes ao longo do processo. Nos Estados Unidos, mais de 90% das condenações são obtidas por meio do plea bargaining[3]. Contudo, não são livres de críticas como o excesso e abuso de poder da acusação em consonância com a política punitivista que fomenta práticas prejudiciais à ampla defesa e à presunção de inocência, entre elas a prática do overcharging[4], que consiste na imputação excessiva contra um acusado para colocá-lo em uma posição negocial desfavorável.[5]
Para tanto, até que ponto as medidas negociais são válidas para o processo judicial brasileiro? A inspiração no modelo americano, com suas falhas e críticas, leva ao questionamento se a supressão de direitos e fases do processo, para garantir uma condenação mais rápida com uma possível pena mais branda do que um processo longo que pode levar à absolvição, bem como qual o nível de informação que o acusado precisa ter para aceitar possíveis acordos, tendo em vista as minúcias da sociedade brasileira e acesso a uma defesa técnica efetiva.
Como exemplo, o cerceamento da instrução do processo, na qual mesmo que o juiz receba a denúncia e tendo os requisitos formais do crime presentes, durante a instrução ele pode entender em absolver o réu.
Desse modo, o número de penas e acordos no país não é sinônimo de desenvolvimento civilizatório, se isso fosse verdade, a pena de morte seria suficiente para acabar com delitos, e isso não ocorre nos países que a permitem[6], pois o excesso de condenação não resolve os problemas da criminalidade. Como bem define Aury Lopes Júnior “o principal argumento justificacionista da justiça negocial, o ‘entulhamento’, precisa ser visto desde outra perspectiva: banalizamos o direito penal como resposta a problemas sociais complexos, priorizando soluções paliativas e sem enfrentar as causas reais.”[7]
[1] BANDEIRA, Regina. Processos Criminais: 9,1 milhões tramitaram na Justiça em 2018. 2019. Disponível em:<https://www.cnj.jus.br/processos-criminais-91-milhoes-tramitaram-na-justica-em-2018/.> Acesso em: 06/10/21
[2] PL 882/2019 e 1.864/2019. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192353> e < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136033>
[3] LIPPEL, Mayara; VASCONCELLOS, Vinicius G. Criticas a barganha no processo penal: inconsistências no modelo proposto no projeto de código de processo penal (PLS 156/2009), p. 2. 2021, Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/20135/17956 Acesso em: 06/10/21.
[4] KALACHE, Kuane; SOUZA, Andre. Plea bargaining: O perigoso caminho em direção ao alargamento das práticas de negociação penal. 2021, Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/749/8568#edicao-8570. Acesso em: 23/08/2021
[5] CAMARGO, Pedro. O risco de overcharging na prática negocial do processo penal brasileiro. 2021, Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/749/8568#edicao-8570. Acesso em: 23/08/2021
[6] A pena de morte não reduz a violência armada, diz especialista dos EUA. 2019 Disponível em: < https://exame.com/mundo/a-pena-de-morte-nao-reduz-a-violencia-armada-diz-especialista-dos-eua/>. Acesso em: 06/10/21
[7] LOPES JUNIOR, Aury. A crise existencial da justiça negocial e o que (não) aprendemos com o JECRIM. 2021, Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/749/8568#edicao-8570. Acesso em: 23/08/2021
Referências bibliográficas:
A pena de morte não reduz a violência armada, diz especialista dos EUA. Disponível em: < https://exame.com/mundo/a-pena-de-morte-nao-reduz-a-violencia-armada-diz-especialista-dos-eua/>. Acesso em: 06/10/21
CABRERA, Michelle. Os acordos penais como efeito da retórica do catastrofismo: uma análise a partir do plea bargaining estadunidense. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/749/8568#edicao-8570. Acesso em: 23/08/2021
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BANDEIRA, Regina. Processos Criminais: 9,1 milhões tramitaram na Justiça em 2018. Disponível em:https://www.cnj.jus.br/processos-criminais-91-milhoes-tramitaram-na-justica-em-2018/. Acesso em: 06/10/21
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Pedro Lucas Campos Silva: graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro da Diretoria de Pesquisa da Comissão Jovem do ICP. Monitor de Direito Penal IV. Estagiário Voluntário na Divisão de Assistência Judiciária da Faculdade de Direito da UFMG (DAJ). Estagiário no escritório Oliveira Filho Advogados.