17/11/2020

A responsabilidade penal de Prefeitos: breves reflexões sobre os tipos penais omissivos do Decreto-Lei 201/67 na ótica dos tribunais superiores

Millena Gêmero

O Decreto-Lei 201/67 elenca, em seu artigo 1º, incisos I a XXIII, os possíveis crimes funcionais a serem praticados por Prefeitos no decorrer de suas gestões.

Tratam-se, portanto, de tipos penais próprios[1], que exigem do sujeito ativo a qualidade especial de ser Chefe do Executivo Municipal. Há, ainda, outro ponto relevante no referido dispositivo: 7 dos 23 tipos previstos são omissivos (incisos VI, VII, XIV, XV, XVI, XVIII e XIX).

Segundo Juarez Tavares, a estrutura dos tipos omissivos é composta por: inação, que “corresponde a uma infração à norma de comando”; real possibilidade de atuar (incluída a “capacidade individual de realizar aquela específica conduta determinada pela norma); e situação típica omissiva, que “engloba todos aqueles elementos ou pressupostos que se associam à inação e fundamentam o dever de agir e o conteúdo do injusto do fato, com vistas ao perigo ou à lesão do bem jurídico”[2].

Dentro da complexa análise da qual devem ser objetos os tipos omissivos, chama a atenção o tratamento dado pelos tribunais superiores a dois deles, previstos nos incisos VII e XIV do artigo 1º do DL 201/67.

O tipo penal do inciso VII prevê a responsabilização do Chefe do Executivo que, dolosamente, deixa de “prestar contas da aplicação de recursos, no devido tempo, ao órgão competente”. Por muito tempo, o entendimento do STJ foi no sentido de que, por tratar-se de crime de mera conduta, o simples atraso na prestação de contas seria suficiente para caracterizá-lo, situação na qual o elemento subjetivo acabava por ser presumido[3].

No entanto, cresceu naquele tribunal corrente que passou a distinguir mero deslize burocrático, supervenientemente reparado” da “vontade deliberada do agente público em sonegar informação”[4]. Assim, quando a prestação de contas era feita tardiamente e aprovada, o STJ passou a compreender a omissão do Prefeito como situação irrelevante para o Direito Penal, em observância ao princípio da intervenção mínima[5].

A mudança de posicionamento do tribunal teve como fundamento a inexpressividade da omissão para eventual violação dos bens jurídicos protegidos (proteção ao erário e moralidade administrativa). Tratou-se, na realidade, da constatação da inexistência do terceiro elemento da estrutura apontada por Juarez Tavares, a situação típica omissiva.

Na construção desse entendimento, todavia, restou pendente aprofundamento quanto à análise da presença do dolo. Assim, cabe trazer à tona posição do STF sobre o elemento subjetivo do tipo previsto na segunda parte do inciso XIV, do art. 1º do DL 201/67, que prevê a punição do Prefeito que deixa de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente”.

A Corte Constitucional fez constar que “exige-se intimação inequívoca do destinatário (Prefeito) quanto à ordem alegadamente descumprida, seja pessoalmente ou por outros meios”, para se aferir o “dolo preordenado em descumprir uma ordem judicial individualizada e diretamente dirigida”[6] a ele.

A despeito das diferenças das infrações previstas nos incisos VII e XIV, do art. 1º do DL 201/67, seria possível uniformizar a análise da presença do dolo nos dois tipos penais. Assim, uma maneira de se chegar à conclusão de que houve “vontade deliberada do agente público em sonegar informação” poderia ser a de averiguar, de antemão, a presença inequívoca da ciência do Prefeito sobre eventual notificação acerca da finitude do prazo de prestação de contas, enviada pelo órgão fiscalizador à prefeitura municipal.

[1] SALES, Sheila Jorge Selim de. Do sujeito ativo na parte especial do código penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 104-106.

[2] TAVARES, Juarez. Fundamentos da teoria do delito. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 396-401.

[3] Nesse sentido, veja-se: REsp n. 707.314, de relatoria da Min. Maria Thereza de Assis Moura; REsp n.º 1.107.180/RN, de relatoria do Min. Paulo Galotti.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Recurso Especial 1.485.762/DF. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior, 23 de outubro de 2014, p. 4. Diário de Justiça Eletrônico: Brasília, DF, 11 nov 2014. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1361200&num_registro=201304075011&data=20141111&formato=PDF. Acesso em: 15 nov. 2020.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Habeas Corpus 235.691/MA. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, 26 de junho de 2012, p. 21. Diário de Justiça Eletrônico: Brasília, DF, 29 jun. 2012. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1162054&num_registro=201200497946&data=20120629&formato=PDF. Acesso em: 15 nov. 2020.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Ação Penal 555/SC. Relatora: Ministra Rosa Weber, 06 de outubro de 2015, p. 2. Diário de Justiça Eletrônico: Brasília, DF, 01 fev. 2016. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=308469983&ext=.pdf. Acesso em: 15 nov. 2020.

 

Advogada Penalista, Mestranda em Direito pela UFMG, Coordenadora Adjunta Estadual do IBCCRIM em Minas Gerais e membro da Diretoria de Pesquisa do ICP Jovem.

Belo Horizonte | Minas Gerais

(31) 97174-1956

fale@icp.org.br