27/06/2019

Tipos penais culposos e dever objetivo de cuidado: anotações sobre a responsabilidade penal por condutas negligentes diante da existência de normas técnicas de engenharia.

Leo Ribeiro

Configurados como normas proibitivas excepcionais[1], os tipos penais culposos[2] podem ser caracterizados em situações de ampla produção de riscos a bens jurídicos que buscam ser tutelados pelas normas penais. Na atualidade, podem ser constatados casos emblemáticos que demonstram a lesividade proveniente de condutas supostamente culposas, como o desabamento do Viaduto Guararapes, na cidade de Belo Horizonte, ou os rompimentos da barragem de Fundão, em Mariana, e da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Nos casos citados, considerando que a imputação aos engenheiros responsáveis pela obra realmente seja de tipo penal culposo por negligência[3], nomeadamente, aquela que é caracterizada a partir da violação de normas técnicas de engenharia[4], é possível que nos deparemos com o seguinte questionamento: quais, dentre as incontáveis normas técnicas existentes, devem ser conhecidas e seguidas pelos engenheiros na execução e fiscalização de suas obras? [5]

Intuitivamente, a resposta para esse questionamento pode levar à conclusão precipitada de que os engenheiros, ao escolherem seguir essa profissão de elevado risco, têm um dever amplo e irrestrito de cuidado, devendo seguir à risca qualquer tipo de entendimento técnico de engenharia, mesmo aqueles que não foram produzidos ou publicados em território brasileiro. Inclusive, o posicionamento encontrado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de ampliação do dever de cuidado a certos profissionais, como os engenheiros, sem indicar quais são os limites objetivos desse dever: “ao profissional que desempenha certas atividades (como o médico e o engenheiro), impõe-se um maior dever objetivo de cuidado”. [6]

No entanto, essa resposta não parece adequada, pois não é exigível do indivíduo acesso a todo tipo de normas ou entendimentos técnicos que são produzidos ao redor do mundo. Dessa forma, quando se afirma que o engenheiro deve observar o “dever de cuidado necessário na utilização da técnica”[7], deve-se entender que os procedimentos foram realizados de acordo com o cuidado mínimo que é determinado pelas normas técnicas específicas que são vigentes em território nacional. No Brasil, deve-se seguir estritamente as determinações legais existentes ou, no máximo, as Normas Regulamentadoras (NRs) e as Normas Brasileiras (NBRs), aplicáveis à engenharia e redigidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Exigir mais que isso, além de empiricamente impossível para o engenheiro, seria legitimar a caracterização da negligência com base na mera suposição de que o procedimento praticado ou omitido pelo agente possui elevado risco de causar danos a terceiros – num juízo posterior[8] –, o que não pode ser uma conclusão aceitável no âmbito da dogmática dos tipos penais culposos.

Portanto, devem ser impostos limites dogmáticos a essa visão inconsequente que não explicita os limites do dever de cuidado e determina que a responsabilização penal pode ser fundamentada em qualquer tipo de razão extrapenal materializada em entendimentos técnicos. Se a mera criação de perigo não é suficiente para a imputação culposa[9], então deve-se esclarecer quais são os limites existentes para caracterizar a violação ao dever objetivo de cuidado. Assim, a punição dos indivíduos deve ser limitada pela dogmática penal, não podendo justificar a caracterização da imprudência os meros juízos objetivos posteriores, referidos a normas que não sejam provenientes de determinação legal ou da ABNT, nem os entendimentos acadêmicos de engenharia ou as considerações sobre a gravidade do risco produzido com a obra. Nesse sentido, espera-se que essas breves anotações possam incentivar o debate acerca dos requisitos para a caracterização dos tipos penais culposos, especialmente no que concerne à negligência que deriva da violação de normas técnicas de engenharia, podendo, quem sabe, possibilitarem uma restrição ao posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.

 

[1] Com análise basilar sobre a excepcionalidade da culpa, levando em consideração o indicado no art. 18 do Código Penal: TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 288.

[2] A princípio, o posicionamento adotado nesse trabalho é de que os tipos penais culposos têm a violação do dever objetivo de cuidado como requisito fundamental, ainda que esse dever objetivo de cuidado implique diretamente à criação de risco não permitido no âmbito da teoria da imputação objetiva. Embora o recorte metodológico deste trabalho não permita que seja aprofundado esse debate, tal ressalva é importante pois há uma grande controvérsia que se refere aos requisitos da caracterização dos tipos penais culposos. Sobre a temática, vide: ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. 2ª ed. alemana y notas por Diego-Manuel Luzón Peña, García Conlledo e Remesal. Madrid: Editorial Civitas, 1997, p. 999-1000; WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal: una introducción a la doctrina de la acción finalista. Trad. Cerezo Mir. Buenos Aires: B de F, 2004, p. 113-114.

[3] Em geral, as dificuldades teóricas apresentadas na diferenciação entre dolo e culpa criam a situação prática na qual o Ministério Público quase sempre imputa o tipo penal, que a princípio poderia ser culposo, a título de dolo eventual, especialmente quando há várias vítimas. Sobre o debate teórico a respeito da distinção entre dolo e culpa, vide: PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad. Luis Greco. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 3-30.

[4] Na lei penal brasileira, o tipo penal culposo pode estar caracterizado em situações de imprudência, imperícia e negligência. Contudo, o termo “negligência” abrange de forma satisfatória as situações de caracterização dos tipos penais culposos. TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 263.

[5] Esse questionamento se justifica especialmente pelo fato de existe um acervo inumerável de normas técnicas aplicáveis à engenharia, que variam desde sugestões científicas à vedação de certos procedimentos – encontradas em inúmeros livros acadêmicos ao redor do mundo – até recomendações de organismos internacionais sobre a segurança nas obras. Problemática descrita de forma extensa e precisa no artigo: SCHÜNEMANN, Bernd. Las reglas de la técnica en derecho penal. In: Obras. 1ª ed. Rubinzal-Culzoni, 2009, t. II, p. 243-283.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 1097076/SP. Quinta Turma. Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 20/02/2018, publicado em 28/02/2018.

[7] Questionando os significados conferidos às normas técnicas para o direito penal, vide: SCHÜNEMANN, Bernd. Las reglas de la técnica en derecho penal. In: Obras. 1ª ed. Rubinzal-Culzoni, 2009, t. II, p. 243-283.

[8] Tipo de juízo que em geral será desfavorável ao imputado. Sobre o assunto, debatendo o erro de proibição, vide: LEITE, Alaor. Dúvida e erro sobre a proibição no Direito Penal. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 122-124.

[9] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Derecho penal: parte general. 2ª ed. Buenos Aires: Ediar, 1999, p. 549.

Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Monitor de Direito Penal II, sob orientação do professor Frederico Horta, com início no ano de 2018. Monitor de Direito Penal I, sob orientação do professor Luís Augusto Brodt, no ano de 2017. Membro do I Laboratório de Ciências Criminais em Belo Horizonte (IBCCRIM e OAB/MG), no ano de 2016. Coordenador do Grupo de Estudos Criminalidade Econômica e do Grupo de Estudos em Reformas Penais, com início no ano de 2019. Autor de diversos artigos publicados em periódicos acadêmicos, dentre os quais está incluída a Revista Brasileira de Ciências Criminais (Qualis A1).  Diretor do Instituto de Ciências Penais, Categoria Jovem (ICP JOVEM). Estagiário no Hermes V. Guerrero Advogados, com início em 2018.

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