João Carlos Gonçalves Krakauer Maia
Ao longo do último 25 de janeiro, todo o país se viu afligido por uma sem fim escalada de angústia e pavor. Os primeiros relatos anunciavam a imensa dor de uma tragédia já experimentada, e jamais esquecida, mas então reavivada em cores ainda mais sombrias. E infelizmente, tudo aquilo que apreensivamente se temia abriu asas e voou para algumas das mais tristes páginas de nossa história: rompera-se outra barragem, e com ela se levaram centenas de vidas inocentes.
Uma dor que as palavras nunca poderão expressar. Mas sem embargo disso, a persecução criminal dos responsáveis, se os houver, não poderá ser feita em meio às lágrimas da tragédia. E se é somente através do Direito e da legalidade que se poderá punir os culpados, é pertinente que se faça, então, a análise de alguns aspectos jurídico-penais do procedimento que apura as responsabilidades pelo rompimento da barragem em Mariana, na medida em que o caminho ali trilhado poderá lançar luzes sobre alguns dos rumos a serem seguidos – ou evitados – no caso atual. Ainda que em termos sucintos, é esse o propósito das linhas que se seguem.
O processo criminal relativo ao rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em novembro de 2015, tramita perante a Subseção Judiciária de Ponte Nova/MG, que é vinculada ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. E no âmbito daquela ação, o referido Tribunal já proferiu algumas decisões fundamentais ao estabelecimento dos limites e contornos com que se poderá buscar a responsabilização penal dos envolvidos: seja para demarcar os requisitos de uma omissão penalmente relevante por parte de dirigentes empresariais, seja para fixar, no caso concreto, os limites acusatórios de imputação típica.
No que diz respeito às exigências para admissão de uma omissão penalmente relevante por parte dos dirigentes empresariais, o primeiro requisito firmado é o da delimitação, na peça acusatória, do instante em que teria surgido um efetivo risco de rompimento da barragem. Pois, como decidido pelo TRF-1 no caso Mariana, “o dever de garantia nos crimes omissivos impróprios somente surge com a identificação objetiva e precisa da situação de risco ou perigo efetivos ao bem jurídico protegido, a ser apontados em termos de tempo e circunstâncias, com a indicação do momento em que a providência deveria ser adotada para impedir o resultado, no caso, o rompimento da barragem”[1].
E ainda segundo a decisão, é fundamental não apenas a indicação do momento em que teria surgido um efetivo risco à barragem (e com ele o dever de agir), mas também a indicação específica da conduta juridicamente esperada por cada um dos dirigentes da empresa para se evitar a concretização do rompimento.
Daí a decisão do TRF-1, já transitada em julgado, pelo trancamento da ação penal em relação a um ex-integrante do Conselho de Administração da Samarco S/A, uma vez que:
“Conquanto alegue que a barragem do fundão sempre tivera problemas desde a sua construção (2008), a denúncia não se preocupou em discriminar, especificamente, cada problema e sua ordem cronológica de aparecimento, para permitir que se estabelecesse uma (eventual) correlação entre a constatação do problema, a ação esperada do Conselho e o seu possível resultado, no tempo e espaço, elementos cuja inexistência impossibilita determinar em que momento se impôs ao conselho (...) o dever de agir”[2].
Para além disso, naquele caso o TRF-1 fez, ainda, uma relevantíssima diferenciação: embora a denúncia tenha imputado crimes de dano (homicídio e lesão corporal dolosos), o que se descreveu, na verdade, foi uma conduta caracterizadora de um crime de perigo comum com suas consequências (crime de inundação qualificado pelas mortes resultantes), sem que houvesse a necessária narrativa – e mesmo demonstração – de que os denunciados teriam consentido com cada uma das mortes e lesões ali causadas.
Como se sabe, nos crimes de perigo comum expõem-se a risco bens indeterminados (sejam eles o patrimônio, integridade corporal, saúde ou a vida), ao passo que nos de dano os bens ameaçados são determinados[3]. Assim, o TRF-1 descartou a possibilidade de “imputações autônomas de homicídio e lesão corporal, descrevendo a denúncia somente uma trágica inundação com resultado morte e lesão corporal”[4]. É que, à luz dessa narrativa, não se poderia imputar os delitos de homicídio e lesão corporal dolosas, mas tão somente o crime de inundação com resultado morte, nos termos do art. 255 c/c o art. 258, ambos do CP.
Das decisões proferidas no caso Mariana, bem se vê, então, algumas claras orientações do TRF-1. No que diz respeito à responsabilização penal dos dirigentes das empresas envolvidas no rompimento de barragens, a peça acusatória deverá especificar e indicar (i) o momento em que teria surgido um risco efetivo de rompimento, e com ele o dever de agir; (ii) a conduta esperada, por parte de cada um dos dirigentes, para se evitar o rompimento. E quanto à imputação típica a ser realizada, (iii) somente poderá se atribuir um crime de dano (ex: homicídio doloso, nos termos do art. 121 do CP) caso a denúncia descreva a “cognição e volição em relação às mortes e às lesões corporais, não bastando a aceitação do risco de rompimento da barragem”[5].
Assim, expostas algumas das exigências já estabelecidas pelo TRF-1 no caso Mariana, é de se esperar que tais balizas sejam observadas caso se pretenda alcançar alguma responsabilização pela tragédia ocorrida em Brumadinho. Mesmo porque, e a bem da verdade, o desrespeito a tais requisitos não só produzirá uma acusação demagoga, mas conduzirá, também, à efetiva impunidade daqueles que de fato o forem culpados.
[1] TRF-1, Habeas Corpus n. 0070468-62.2016.4.01.0000/MG, Rel. Des. Olindo Menezes, p. 7.
[2] TRF-1, Habeas Corpus n. 0070468-62.2016.4.01.0000/MG, Rel. Des. Olindo Menezes, p. 7., p. 9.
[3] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, vol. 3. Saraiva, 1977, p. 357.
[4] TRF-1, Habeas Corpus n. 0010679-98.2017.4.01.0000, Rel. Des. Olindo Menezes, p. 6.
[5] TRF-1, Habeas Corpus n. 0010679-98.2017.4.01.0000, Rel. Des. Olindo Menezes, p. 8.
Advogado criminalista. Sócio do Escritório Sânzio Nogueira, Nhimi & Krakauer advogados. Mestrando em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).