Antonio José Ferreira Levenhagen
Em agosto do ano passado, no julgamento do Habeas Corpus 399.109, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma das decisões mais comentadas de 2018, decidindo, por maioria, que o não recolhimento do ICMS em operações próprias, ainda que declarado ao Fisco, configura crime de apropriação indébita, nos termos do art. 2º, II da Lei nº 8.137/90:
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (...)
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
Não faltaram críticas à decisão, principalmente por parte de tributaristas, focando principalmente no argumento de que a mera inadimplência não seria crime, uma vez que não é correto dizer que o contribuinte “cobra” ou “desconta” o ICMS do consumidor[1], já que este não é sujeito passivo da relação jurídica[2], o destaque do tributo no preço dos produtos serviria apenas para efeito contábil e fiscal[3]. Além disso, argumenta-se que o tipo penal em questão se limitaria à hipótese do ICMS de Substituição Tributária, em que o adquirente arca juridicamente com o tributo[4].
Todas as críticas parecem partir do pressuposto de que a decisão do STJ considera que o consumidor seja o sujeito passivo da obrigação, ou ao menos de que o tipo penal se refere à apropriação de um tributo que foi cobrado de seu sujeito passivo, o que somente seria possível no caso de Substituição Tributária. Contudo, analisando detidamente o voto do relator, conclui-se que as críticas foram diretamente enfrentadas pelo Ministro Schietti, que buscou estabelecer uma diferenciação entre o termo “cobrado” na esfera tributária e na esfera penal:
Os termos "descontado ou cobrado" não correspondem, tecnicamente, ao fenômeno tributário originado pela relação jurídica que serve de substrato para a conduta descrita no tipo penal. Com efeito, nenhum sujeito passivo de obrigação tributária (direto ou indireto) "desconta ou cobra" tributo; na verdade, ele retém. [...]
O termo "cobrado", por sua vez, deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos, mesmo aqueles realizados em operações próprias, visto que o contribuinte de direito, ao reter o valor do imposto ou contribuição devidos, repassa o encargo para o adquirente do produto. Especificamente no que tange ao ICMS retido em operações próprias ou em substituição, o encargo é reembolsado dentro da cadeia de produção, de modo que o substituto e os substituídos não suportam, economicamente, o valor da exação que somente será arcado pelo consumidor.
Conforme exposto no trecho colado acima, para a decisão o significado penal do termo “cobrado” não necessariamente se relaciona com o conceito tributário, até mesmo porque, se assim fosse, o tipo penal seria completamente inútil, já que em termos tributários, somente o sujeito ativo da obrigação pode “cobrar” o tributo.
O Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que proferiu voto acompanhando o relator, ainda trouxe um outro argumento tributário para sustentar seu entendimento:
Relevante registrar, ainda, que, em recente julgado do Supremo Tribunal Federal, considerou-se não ser possível incluir o valor do ICMS na base de cálculo da COFINS e do PIS/PASEP, uma vez que não se trata de receita da empresa, a qual apenas faz o intermédio no repasse do imposto efetivamente cobrado do consumidor, que deve ser diretamente repassado ao Estado.
Como é de amplo conhecimento, o recente julgado mencionado é o RE 574.706, em que o STF determinou que o valor do ICMS não integra a base de cálculo da COFINS e do PIS/PASEP. A decisão foi ancorada na argumentação dos próprios contribuintes de que o ICMS não seria receita deles, mas sim do estado, e que essas cifras jamais se incorporariam ao patrimônio das empresas, apenas perpassariam temporariamente pela sua contabilidade. Ou seja, para o Ministro, se o ICMS não é receita da empresa, o não repasse do imposto configuraria apropriação indébita.
Uma outra linha argumentativa em defesa da posição do STJ considera extremamente relevante o fato do artigo mencionar “valor de tributo”, ou seja, não é necessário que a pessoa cobrada seja o sujeito passivo do imposto, uma vez que o tipo não exige a “cobrança do imposto”, mas sim a “cobrança do valor do imposto”[5]. Uma diferença sutil, mas que efetivamente transporta a discussão para uma esfera econômica, e não necessariamente de relação jurídico-tributária, uma vez que o comerciante estará cobrando o valor do imposto ao adicioná-lo ao preço do produto.
Não se busca aqui defender qualquer um dos lados do debate, mas sim tentar trazer clareza e transparência aos argumentos empregados pelo STJ, que não são muito explorados. Destaca-se, por fim, que a discussão está longe de terminar, o caso paradigma foi levado ao STF através do Recurso em Habeas Corpus 164.334 e chegou a ser incluído na pauta da 1ª turma. Contudo, o relator Min. Luis Roberto Barroso entendeu que, devido a relevância da matéria, sua apreciação deve ser realizada pelo Plenário da Corte. Desse modo, o Ministro retirou o processo de pauta e deferiu de ofício uma liminar para proteger as partes envolvidas no processo até o julgamento do caso.
[1] https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI288159,31047-Apropriacao+indebita+tributaria
[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/e-mesmo-crime-destacar-icms-e-nao-pagar-19092018
[3] http://www.haradaadvogados.com.br/da-impossibilidade-juridica-de-crime-de-apropriacao-indebita-do-icms/
[4] https://pvg.com.br/artigos/deixar-de-recolher-icms-proprio-ainda-que-declarado-e-considerado-crime-por-jurisprudencia-recentemente-uniformizada-no-stj
[5] https://jus.com.br/artigos/70822/apropriacao-indebita-do-icms/1
Advogado Tributário
Mestrando em Direito Público na PUC-MG com foco em Direito Tributário Internacional
Graduado em Direito pela PUC-MG